quarta-feira, 29 de junho de 2011

Onze e meia em Cronos


Lá se vai o pretenso sábio
Tal qual o espectro morto
Envolvido em cinqüenta metros de pano
Tecido negro, como seu inventário torto.
Nem ao se vestir de malha de prata
Reluzente à luz do sol
Nem ao se exibir a construída e exata
Precisão do seu cabedal em rol,
Encontra paz, o pretenso sábio.

Agruras da vida o caçaram
Dificuldades que só ele enxerga
O seu sucesso não o satisfez
Não importa o que um dia fez
Nega-se ele ao prazer da entrega
Só o fluir etílico anestesia
É a pretensa vida que se (in)completa
Aos verdadeiros sábios copia
Aos verdadeiros idiotas simula
Para a morte, uma estrada reta
Pela vida, uma estrada dura.

Lá se vai o pretenso humilde
Cheio de si em só descrição
Esconde o orgulho em um copo
Uma dose de mágoa, duas de ilusão
Aparece em todas as portas
Senta-se em todas as mesas
Conhece todas as línguas,
Dono de todas certezas.

Quando lembra na caverna à noite,
Qual morcego em seu recôndito úmido
Da infância que foi seu açoite
Dos momentos de abuso pútrido
E das desventuras que se seguiram
Cada vez mais azeda um esgar.
Rir do mundo e dele fazer pouco
Estar aliado aos pessimistas
Abandonar a luz com um riso rouco
De escárnio e de sofrimento
Abandonar a luz ainda mais
Deixando a esperança para trás
E partir sábio, para o esquecimento.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Sono após o almoço


E o sono vem,
A fera desabalada,
Alimentada por bons sabores
A apresentar-se num palco
Perigosamente iluminado,
Profusamente colorido
De enebriante, e perfumado
Ar por vezes aquecido,
Outras vezes esfriado
Mas nem assim desprendido
Desse sono que me domina.

E o sono vem,
Montado a galope,
Nas rédeas de um corcel,
De nome Escalope,
Filho de Bolo de Tapioca,
Com Cafezinho e Pão de Mel.
Ele vem, certo da sua vitória
De sagrar-se aqui vencedor
E quem vence, escreve a história.

O sono vem,
Trazendo brumas e fadas
E eu travando batalhas,
Vem sem armadura ou espada
Apenas algumas migalhas
Que sobraram do meu almoço.
Mas que são suficientes
Para fazer alvoroço,
Nesses meus olhos dormentes,
Prestes a se entregarem,
As pálpebras a se juntarem
E o fim derradeiro,
A rendição final,

Sozinho, mais ninguém resta
Me encontro no fim da festa
Cansado a respirar,
O sono ocupa lugar,
Meu cansaço, a descansar
A vontade da velha acolhida
Que seja uma curta dormida,
Uma pedra irei me tornar.

E veio o sono,
E o papel foi seu, a saber
De fazer-se tema
Para poema eu fazer.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Hanna


Assisti ao filme “Hanna” de Joe Wright, diretor do festejado Desejo e Reparação, de 2007. A presença de 2 atores de quem eu gosto bastante, como Eric Bana e Cate Blanchett, além da vontade de rever a quase impronunciável, Saoirse Ronan, que tinha feito um bom trabalho naquele mesmo Desejo e Reparação, fez com que eu me interessasse por esse filme, que prometia ser um bom thriller de espionagem. Mas, nem tudo neste filme é o que parece. E, apesar dessa característica funcionar bem em alguns filmes, neste aqui não foi bem o que aconteceu.

Partimos da premissa já bastante explorada da “tentativa genética de se criar uma arma perfeita”. Apesar de batida, nada contra o ponto de partida da trama, que já rendeu e ainda pode render bons filmes nesse filão, desde que a idéia seja bem explorada. A tal “arma perfeita” é personificada aqui por uma adolescente criada desde a infância em um ambiente inóspito, por um pai que demonstra ser um agente secreto competente. Percebe-se que todos esses anos passados em isolamento, serviram apenas para que a menina se escondesse, ao mesmo tempo em que o pai a ensinava todo o necessário para se proteger caso algum dia fosse descoberto seu paradeiro. Mesmo sem o filme entregar os detalhes todos de cara, quem está habituado com esse tipo de roteiro matará algumas charadas de pronto. Na primeira quinta parte do filme, já vimos pistas o suficiente de que a experiência que resultou no nascimento da menina em algum momento foi cancelada. Que há toda uma divisão da CIA, comandada por uma agente implacável, interessada em que essa informação jamais chegue a público.

Até certo momento, as decisões criativas do diretor parecem funcionar bem. A utilização de conceitos pouco usuais para esse tipo de filme, seja no tratamento visual, seja nos jogos de câmera, e até mesmo certas decisões de roteiro, funcionam bem em alguns momentos. Acaba criando-se um clima diferente, destacando a história e dando um sabor diferente do que outros filmes do mesmo gênero costumam mostrar. Porém, se esse estilo funciona bem em alguns momentos, as mesmas decisões começam a fazer o barco balançar para o lado errado muitas outras vezes, atrapalhando até um pouco mais que ajudando. Em alguns momentos a simbologia poética que ele procura utilizar em certas cenas se perde por não condizer com o estilo da trama, em outros a forma de filmar as cenas de luta e ação parece um tanto inadequada, ou até mesmo datada. Chega-se ao extremo desse aspecto em uma cena onde a personagem principal derruba um inimigo com rapidez, cortando-o várias vezes na área do tórax e pescoço com uma faca, conseguindo a façanha de não vermos uma gota de sangue decorrente do ataque. A questão de

Enquanto os atores estão corretos em seus papéis, certas situações em que o roteiro os colocam não são favoráveis a seus desempenhos. Eric Bana convenceria como um agente recluso que tenta proteger a filha a todo custo, se o roteiro não fizesse com que ele se separasse dela em pontos cruciais da história. Cate Blanchett convenceria como a agente implacável, que quer eliminar tanto pai como filha a qualquer custo, se tivesse cenas onde pudesse mostrar de fato porque é uma agente implacável, ou uma vilã desprezível. Vemos seu modus operandi, mas pouco sabemos de suas motivações. E Saoirse Ronan como Hanna, simplesmente emprestou sua aparência ao personagem, mas pouco contribuiu com algo que tornasse o personagem marcante. Vemos em Hanna uma menina que poderia ter sido interpretada por qualquer outra atriz da mesma idade e característica física. Somado a isso, um elenco de apoio variando entre o pobre e o irrelevante ajudou a balançar um pouco mais o barco do filme. Alguns dos capangas e a personagem da menina que em certo ponto da fuga, faz amizade com Hanna, pareciam ter saído de filmes de comédia, sendo este um dos pontos mais fracos de toda a obra.

Concluo considerando que o filme não é de todo ruim. Como produção, não deixa a desejar. Algumas decisões estéticas, a sacada de mesclar conceitos e simbologias de um conto de fada dos irmãos Grimm a um thriller de espionagem, e a trilha sonora dos Chemical Brothers também é um toque de qualidade e diferenciação ao estilo. Pena que com tantas peças de boa qualidade, o quebra-cabeças final não tenha passado de um filme na média do estilo. Outros já fizeram melhor, com menos.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A Moça Que Era Brisa

© Nekranea (DeviantART)
Quando eu desencarnei
Não sei dizer bem ao certo
Se aquele canto lá onde cheguei
Era o céu, ou lugar mais perto
Só sei que ao chegar,
Me mandaram esperar
Sentada, paciente
Até vir um atendente
Pra comigo conversar

Entrei numa sala e sentei à mesa
E qual não foi a minha surpresa
Ao saber que tinha que voltar
Com uma tarefa a desempenhar.
Pra pagar a minha estadia
Pro mundo dos vivos iria voltar
Apenas um vento eu seria
Mas era importante o que ia soprar

Meu trabalho era por caridade
Procurar por quem sofreu demais
E fazer esquecer uma parte
Soprar algumas memórias pra trás
Minha tarefa era por piedade
Vetar das memórias alguns sofrimentos
Economizar das pessoas certos tormentos
Pra viverem, ou morrerem com dignidade

E o tempo passou,
E me apeguei à minha função
Deixava leve o meu coração
Ser aquela que com o vento levava
O choro da mãe que embalava
O filho pequeno sem pulsação
Aquela que com o tempo fazia entender
Que mesmo sofrendo é preciso viver
Pra poder ajudar os que ficarão

Até quando acabou o meu tempo
E eu pude partir afinal,
Me disseram, trabalhei a contento
Mas eu me sentia um pouco mal
Pois de todo sofrer que soprei,
Junto também ia um pouco do meu
E agora, eu dizia, se eu chorar
Quem fica pro meu pranto soprar?

Um abraço de luz eu ganhei
“Não vais mais chorar, pequenina
Pois até o pranto sem fim
Nos meus braços um dia termina”
E assim para a luz eu segui
Pra encontrar com o nunca e o sempre
Me juntei ao princípio de tudo
Estive na criação, em seu ventre
E todo o sofrer ficou mudo
E toda a vida voltou
Nesse momento mais uma alma nasceu,
No exato momento que meu vento soprou.

Pesos e Medidas

© Jonas Kussama
No caminho para casa, às vezes me assalta uma preocupação que se mostra mais eficiente que a maioria dos bandidos da cidade. Me assalta um medo meio aleijado, um tanto manco, que me persegue persistente e irritante, apesar da dificuldade em seu claudicante andar. Algo que nunca me alcança, mas tampouco me deixa em paz. Consigo ouvi-lo por cima dos sons do trânsito e do conversar das pessoas. É o som da areia caindo, de minutos indo embora e não voltando mais. Tento em vão segurá-los, impedir sua partida até o momento em que desisto revoltado. Nessa hora só desejo que vão com Deus, e o diabo que os carregue...
A poder de música, consigo negociar alguns sorrisos internos e alguma satisfação um tanto diluída, mas ainda assim genuína. Procuro exercitar minha capacidade de alternar importâncias, e penso no cara que desmanchou o noivado perto do casamento. A noiva, tomada de assalto pelo ódio movido a essas paixões irracionais tão comuns em nosso tempo. Traçou um plano junto à madrasta e ao padrasto esse último um estereótipo ambulante, o típico policial-corrupto-carioca (tudo junto, por serem conceitos cada vez mais indissociáveis, infelizmente) a morte do rapaz. Ele escapou com vida, mas não antes de tornar-se um alvo móvel, e ganhar alguns buracos de bala pelo corpo. Há também o fato do rapaz ter sido mantido em cativeiro e apanhado durante sete horas. E de conseguir escapar, fugir, se jogar em um valão e fingir-se de morto.

Eis que de repente minha volta pra casa adquire novos ares, a música consegue animar meu espírito mais e mais, e até as plataformas de petróleo na baía adquirem os ares poéticos de uma singela letra de bossa nova. Tudo é uma questão de perspecitva, não é mesmo?


Publicado no Recanto das Letras em 23/09/2008

À prova de quase tudo

© Chris Boyd
O mundo é o mesmo, não mudou em nada.
Mas ainda assim estamos aqui, frente a frente
E se a perfeição do destino nos foi roubada,
Se ambos tivemos que nos virar, de repente
E aprender, bem ou mal a assimilar as porradas
Que os bandidos vieram e deram na gente...
Doeu, mas aprendemos. Sobrevivemos.

Nos tornamos capazes de pôr de lado esperança,
E até um pouco da fé nesse mundo selvagem
Mas soubemos proteger o nosso lado criança
Pra não tê-lo estragado, só de sacanagem
Por essa gente tão feia que sempre nos alcança.
Desiludiu, mas aprendemos. Sobrevivemos.

Encontramos falsos amores, casos e promessas
Fomos passados pra trás, subtraídos em valores
Repetimos sem conta: “não me venha com essa”
E descobrimos remédios para aliviar essas dores
E seguimos, pois ainda assim tínhamos pressa.
Enfrentamos, e aprendemos. Sobrevivemos.

Cada um seguiu para um lado, que mais conviesse.
Um tornou-se emissor de emoções, uma fonte
Outro, guerreiro defensor da razão, como prece.
Nos vimos no mesmo campo, no mesmo front
Em lados opostos, mas não inimigos, ao que parece
Lutamos (muito) para aprender. Sobrevivemos.

Hoje encontramos descanso nas cores de uma flor
Nos pequenos e doces prazeres dos tempos de paz
Almas cansadas, habituadas a todo tipo de dor
Recusamos os protocolos, e os códigos, não mais.
Nos achamos, nos reconhecemos em meio ao tremor,
E com o mundo girando, deixamos regras pra trás

Não jogamos, porque o jogo já não há
Não comparamos, pois a vida passa sozinha
Entendemos que há muito que esperar,
Mas que a vontade que de nós se avizinha
É o anseio de viver sem se preocupar
Se o que se aproxima é flor, ou erva daninha.
Sobrevivemos, à flor, e ao veneno.
Eu, Você, sobreviventes ao extremo.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Rango



Há mais de uma maneira de se gostar, ou não, de um mesmo filme. Só que às vezes, a gente esquece disso. Ultimamente, temos assistido (me incluo aí, mea culpa mode on) os filmes cada vez mais no piloto automático, como se a razão de ser dessa atividade fosse um simples chegar ao fim da fita e emitir um thumbs up ou thumbs down. Mas este filme foi capaz de me fazer dar um tempo no piloto automático e assistir algo com gosto, não pra dizer se é bom ou ruim apenas, mas pelo prazer do passeio.


Para chamarmos um filme de bom, pesa para o resultado final o desempenho de atores, a mão do diretor, a questão dos efeitos especiais? Claro, tudo isso é levado em conta para que se dê uma opinião sobre gostarmos ou não (e o quanto) de um filme. Mas depois de ter lido algumas críticas um tanto discordantes sobre Rango (2011) de Gore Verbinski, e finalmente tê-lo assistido, percebi tratar-se de um daqueles filmes que pede uma apreciação um pouco diferente. Tive que ir além do trabalho das vozes dos atores, da produção da animação e do estilo que Verbinski imprimiu na coisa toda. Pra captar bem as reais qualidades desse filme, precisei lembrar que às vezes o que de nós mesmos projetamos no filme que passa ali na tela,  é tão importante quanto o filme projetado na tela para nós.


Definitivamente o filme não é pra crianças, e isso se percebe nos primeiros diálogos. Tomando como ponto de partida um viés completamente existencial, assistimos a trajetória de um pequeno camaleão verde que vive num terrário, completamente perdido quanto a  seu papel no mundo. Após um acidente, nosso amigo réptil vai parar em uma cidade perdida no deserto de Mojave, habitada por personagens típicos da região e do imaginário western. Alçado à categoria de xerife após criar de última hora para si a persona destemida de nome Rango, ele tem a partir de então, se não a resposta para o “quem sou eu” existencial, ao menos um objetivo à frente: proteger a cidade e seus cidadãos de seus inimigos.


O que se vê daí pra frente é um desfile muito rico de citações a vários filmes, (mais frequentemente do gênero western, mas não só) pontuados por algumas surpresas interessantíssimas e encenados por “atores” digitais maravilhosamente desenhados. Os animais-personagens são perfeitos ao retratar a feiúra e a personalidade dos habitantes do deserto. A produção acerta tanto pelo lado da história natural, ao mostrar animais perfeitamente reconhecíveis, quanto pelo lado da adaptação desses mesmos animais à aparência e aos trejeitos,  cacoetes, e linguajares dos típicos componentes do universo do oeste americano. Como ponto negativo, destaco apenas alguns vícios trazidos pelo diretor de sua série Piratas do Caribe, o que faz com que algumas vezes, Rango lembre a série citada mais do que o necessário ou desejável. Mas esse ponto não tira o brilho do filme para quem, como eu, pôde reencontrar conceitos e símbolos do velho oeste misturados a uma animação competentíssima, recheada de personagens engraçados e dublados por atores talentosíssimos. Entre os talentos que emprestaram voz para alguns personagens no original em inglês, temos além de Johnny Depp na voz do protagonista, gente boa como Alfred Molina, Harry Dean Stanton, Bill Nighy, Ned Beatty, Ray Winstone, Abigail Breslin, e Timothy Olyphant.

Recomendo para qualquer um que goste não somente do gênero western, mas de animação em geral, com um tom mais adulto. Me diverti. Uma dica: após o fim do filme, assista os créditos finais. O clipe, que acompanha a música título do personagem principal, é um pequeno show à parte.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Limitless - Sem Limites

Assisti ao filme Limitless – Sem Limites (2011) e confesso, com uma ponta de desconfiança. O fato de ter 2 atores de presença arriscada no elenco já era um indício. O primeiro, Bradley Cooper, é daqueles tipos “novo hype” que Hollywood volta e meia tenta empurrar garganta abaixo do público, fazendo um filme a cada 5 minutos. O segundo, um Robert De Niro que já conseguiu ir do topo da montanha, onde era ícone absoluto do cinema até o vale profundo onde moram aqueles artistas cuja presença em um filme pode fazer o mais eclético dos cinéfilos pensar duas vezes antes de assisti-lo.

Girando em torno da corriqueira idéia “cara fracassado que da noite para o dia adquire capacidades extraordinárias”, também precisaria de uma dose de competência para funcionar, visto que no passado outros filmes foram feitos baseados nesta mesma premissa, com os mais variados resultados. E eis que a última coisa que eu esperava acontecer, acontece de fato. Fui surpreendido.

O diretor Neil Burger (O Ilusionista, The Lucky Ones) conseguiu impor à produção não só um ritmo eficaz, como também visualmente interessante. Bem equilibrada entre o comercial e o autoral, a linguagem visual do filme atua como um importante suporte à história e ao clima do filme como um todo. Bons acertos da direção, boa fotografia e efeitos visuais, acrescentaram charme a certas cenas e reforçaram o clima de outras de forma bastante eficiente. Mérito pela escolha de usar os efeitos e a parafernália visual mais como apoio do que como fogos de artifício, o que combinou de forma perfeita com a história, onde a grande mudança acontece em primeiro lugar dentro da mente do protagonista.

Conte-se também o fato de que os atores, em especial o protagonista, estão bastante corretos em seus papéis. Tanto Cooper quanto De Niro conseguem tornar seus personagens críveis, sem descambar para o clichê. E para o desenvolvimento do filme, apesar de um ou outro detalhe ou personagem previsívis ou dispensáveis no roteiro, a conta fecha bem. E para maior de todas as surpresas, numa época de tão pouca inspiração nos filmes americanos, é um prazer encontrar um roteiro em que se chegue a um final bem amarrado. O normal hoje são filmes onde a proposta é boa, onde se supõe ou se espera um bom desenvolvimento de roteiro, mas onde as boas premissas vão cedendo lugar à evolução fraca, culminando em finais muitas vezes constrangedores. Aqui, ao contrário, o que acontece é que mesmo havendo um ou outro detalhe menos cuidado no meio do caminho, o filme encontra um modo de superar esses detalhes e fechar a conta no positivo, e ainda com uma bela gorjeta no fim. Nos últimos tempos, é mais do que se poderia esperar.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Uma crônica sobre nada


Ele acorda meio moído, como se saísse aos poucos de dentro de um caminhão de frigorífico que despencou ribanceira abaixo. O despertador não quer saber de nada, e continua apitando freneticamente, como uma mulher mal-comida. Sem perceber, ele passa uns 5 minutos tentando ignorar o despertador, fazendo cara de não tô nem aí. Estica o braço para abrir as persianas e deixar um pouco de luz entrar no quarto. Olha pro lado, vê a hora. Um minuto passa no visor. O vizinho de baixo já está em atividade. O rádio ligado, tocando um pagode que nunca deveria ter sido composto, de tamanha afronta que representa ao gênero musical. Por sorte a música está em seus momentos finais. Entra a locutora da rádio, dizendo que a rádio é um amor. Ele fica com vontade de mandar a rádio, o compositor da música e a locutora tomarem no cu. Pensando nisso ele levanta da cama.

Pega uma cueca na gaveta, liga seu próprio rádio e se dirige ao banheiro. No rádio, o programa de notícias com locutores metidos a engraçadinhos. Chega até a ser divertido porque os locutores parecem tão fora de contexto que chegam a ser divertidos. É como de um cara que conta uma piada sem graça mas que não percebe que estão rindo dele mesmo e não da piada.

Banho, barba, escovar os dentes, roupa. O maldito inverno não existe no Rio de Janeiro. Um sol que já denuncia um calor incômodo na hora do almoço aparece, tão insistente quanto o pagode que tocava no rádio do vizinho. Ele chega ao ponto de ônibus no horário de sempre, nem muito adiantado nem atrasado ainda, dependendo da boa vontade do trânsito de qualquer maneira. O ônibus comum demora o suficiente para fazê-lo ficar com vontade de pegar o executivo. Mas é besteira. Pagar mais caro, por um pouco mais de conforto, mas ainda assim chegando atrasado se o trânsito estiver ruim não vale a pena.

No ônibus, ele passa pela praia. A visão de um mar que reflete o azul do céu faz com que ele quase se sinta feliz. Não que não tenha seus motivos. Mas para se sentir feliz não basta o mar refletindo o sol. Precisa só um pouquinho mais.

Publicado no Recanto das Letras em 25/06/2006

Aprendendo e Vivendo III


Miguel tentou ignorar o gosto metálico que invadia sua boca. Mas como em todas as outras vezes, aquele gosto estranho chegava assiduamente. Aquele gosto de alumínio. Aquela sensação imbecil de ter mastigado uma lata de refrigerante, que nunca teve sequer uma gota de refrigerante dentro. Como em todas as outras vezes, ele sabia que por mais incômodo que fosse, aquele gosto de metal era apenas um símbolo. Era como o porta-estandarte de um exército de estranhas mágoas e sensações ruins. Alas e alas de lembranças paramentadas em armaduras do mais brilhante ódio passariam em marcha diante de seus olhos. Por dias. Um espetáculo angustiante.

Miguel olhou profundamente nos olhos de Mariana, mas era como em todas as outras vezes. Conseguia perceber o vazio que cada movimento nervoso daquele olhar transmitia. Conseguia ler com clareza as palavras ocultas por trás de cada desvio de olhar. Conseguia cronometrar com precisão de centésimos o quanto tempo além da sinceridade ela lhe exibia seus cada vez mais raros sorrisos. Como em todas as outras vezes, Miguel sentia-se como o típico perdedor, aquele estereótipo cartunesco da primeira metade do século XX. Nu, apenas com um simbólico barril de madeira em torno do corpo, enquanto Mariana sentada em alguma mesa igualmente simbólica contava os valores ganhos no jogo.

Dentre as alas que desfilavam na melancólica parada das lembranças, havia a do sorriso fácil. O sorriso que hoje vinha em escasso racionamento, há pouco tempo atrás fluía daqueles lábios com facilidade quase indecente. Outra ala vinha orgulhosamente representando os olhares e suspiros, os entendimentos sem palavra alguma que fizeram com que Miguel jogasse anos de um bem construído ceticismo no lixo e acreditasse em telepatia, predestinação e vidas passadas. Como em todas as outras vezes, Miguel sentia-se curvar sob o peso do próprio tempo, sob a enormidade daqueles outrora parcos seis meses, agora convertidos em seis milênios, seis mil toneladas, seis milhões de anos-luz.

Bastaram algumas palavras de Mariana. Algumas palavras, uma ou outra atitude, um ou outro olhar desviado. Como em todas as outras vezes, Miguel ignorou seu hipotálamo a avisar-lhe que aquele “eu te amo” veio estranhamente cedo. Como em todas as outras vezes, colocou todas as suas fichas em jogo. Como em todas as outras vezes, não fez um backup externo de seus valiosos sentimentos. E Mariana, alheia a isso tudo simplesmente jogou seu jogo. De uma declaração de amor a um não-sei-estou-tão-confusa, flutuou com a leveza mortal de uma espada samurai, afiada o suficiente para cortar uma peça de seda em pleno ar. Como em todas as outras vezes, Miguel não percebia o menor tom de arrependimento, ou de consternação vindo do lado de lá. Talvez o que mais fazia com que se sentisse ferido fosse essa indiferença extrema, essa frieza que Mariana transmitia em cada movimento agora. Era como se a cada olhar desviado, a cada gesto nervoso, seu ser inteiro afirmasse categoricamente para o esmagado Miguel: Não há nada que eu possa fazer por você.

Como em todas as outras vezes, Miguel entoou a liturgia de seu desamor. Desde as clássicas perguntas sobre suas chances futuras, até o humilhante ato de contrição de esperar pela possibilidade de uma amizade improvável. Como em todas as outras vezes, ele se odiou mais um pouco por querer tanto e conquistar tão pouco. Como em todas as outras vezes, Miguel chorou amaldiçoando-se mil vezes e ao seu eterno retorno, a cada lágrima derramada. Como em todas as outras vezes, Miguel prometeu a si mesmo que não faria igual da próxima vez. E como em todas as outras vezes, fracassou e se tornou nada mais que matéria prima para canções baratas de uma banda indie qualquer.