quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Máfias, culpados e um bonde no meio


©Band

Nessas últimas semanas, testemunhamos fatos que embora bastante diferentes em si, evocam todo um espírito de descrença política. Não uma descrença conhecida, a descrença que todos os brasileiros tem para com seus representantes. Trata-se de uma descrença mais abrangente, uma descrença ampla, quase global. Quanto a nossos representantes, muito é dito, muito é discutido, muito é investigado. Muito é até provado, mas eles conseguem se valer das artimanhas do sistema, criado e gerido por eles próprios, para planarem graciosamente acima de todo e qualquer impropério, acusação ou revolta que a sociedade possa sentir pelos atos perpetrados por eles.

Tome-se como exemplo Governador do Estado do Rio de Janeiro, que em nome de uma "cruzada do oba-oba para trazer investimentos ao nosso Estado" elegantemente ignora todo e qualquer problema infraestrutural que aconteça por aqui. E por problemas infraestruturais, entenda-se uma política de segurança que tenta conjugar combate ao crime de uma forma marketeira com (pasmem) a manutenção de uma banda podre firmemente instalada na polícia há anos. Entendam-se também absurdos que vão desde a flagrante falta de atenção para com a gestão criminosa de recursos destinados a defender as cidades da serra das chuvas de verão por parte de seus próprios prefeitos, até a bueiros explodindo e causando danos a cidadãos, automóveis e outras propriedades, passando por esdrúxulos acidentes com os centenários bondes de Santa Teresa, que de tão sucateados, transformaram-se de atração turística a peças de trem-fantasma. Sem contar aí com o que todo morador mais ou menos informado do estado sabe: o interesse do governador em trazer investimentos passa muito mais para abocanhar parte desses investimentos em proveito próprio e de seus aliados, amigos e associados, conduta esta que coaduna-se com a prática já notória de colocar o escritório de advocacia onde sua esposa atua como representante de várias empresas, órgãos e áreas de interesse do estado. Não é à toa que o povo do Twitter criou uma hashtag famosa e recorrente na rede social, a #MafiadoCabral.

Em outro episódio do mais dantesco desrespeito ao eleitor, a câmara dos deputados em Brasília absolveu ontem a Sra. Jaqueline Roriz das patifarias que ela foi (flagrada em vídeo, inclusive) acusada de cometer. Um episódio enojante, mas ao mesmo tempo, triste de tão previsível. Coisas do tipo que me fazem sair do óbvio, portar meu pensamento do foco principal e começar a olhar a questão de uma forma mais periférica. Se são todos representantes eleitos por nós, não seria razoável imputar a responsabilidade por esses desmandos a nós mesmos? Ou pelo menos não seria mais útil mudar o foco de nossa indignação? Parar de pensar em como os políticos são corruptos, venais, fisiológicos, e começarmos a pensar em como votamos mal, em como encaramos a política de uma forma "nas coxas"? Não é a hora de colocar a mão na consciência e pensar em quantos de nós não sabe sequer o nome dos deputados e senadores para quem demos nossos votos na última eleição? Não adianta reclamar depois que os jogadores estão em campo, principalmente em um jogo onde quem faz as regras são eles. Ao pensar nisso, uma última imagem invade minha lembrança. Quando é época de eleição, nas vias em que costumamos circular nas cidades grandes, é normal vermos com frequência carros adesivados com os nomes de diversos candidatos. É normal vermos as pessoas oferecendo esse espaço em troca de "uma força na gasolina", em troca de "um troquinho",em troca de um apadrinhamento, de uma vantagem, de um favorzinho lá na frente. Pergunto que tipo de políticos podemos esperar vindos de um ambiente desse tipo. Pergunto por que tantas pessoas se surpreendem quando um canalha escapa de uma cassação ou condenação, livre por seus pares, sendo que todos são nascidos e amamentados na prática do toma lá dá cá. E lembro que o toma lá dá cá não é invenção do político, é parte componente do DNA nacional, do jeitinho brasileiro, do material de que todos nós, gostando ou não, somos feitos. Somos um povo com defeitos e qualidades. Adoramos vangloriar nossas qualidades, mas constantemente nos surpreendemos com nossos defeitos, só porque os vemos refletidos nos outros, como se eles, apesar de políticos, não tivessem saído do mesmo lugar que nós. O tamanho da nossa responsabilidade é, ou ao menos deveria ser, maior do que o da nossa indignação.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Velho



Sempre tirei um bom proveito das redes sociais em das quais participei. Acesso a informações, diversão, conhecimento... Todos os regalos que agradam um espírito faminto de informações, curiosidades e trilhas para seguir como o meu. Apesar de sua gênese se dar no meio virtual, de seu ambiente ser o recente (historicamente falando) mundo da informática, as redes sociais não são diferentes de outras interações humanas. Por trás de todas as placas, teclados, monitores, conexões, discos rígidos, web sites e servidores, ainda somos nós lá. Interagindo mal e porcamente, como fazemos desde que descemos das árvores, com poucos momentos de melhora no desempenho de nossas interações. Seria ilusão nossa acreditar que não existiam trolls, que naquela época deviam ser conhecidos por espíritos de porco (ou algo que o valha) nas assembléias da Grécia clássica. Quiçá desde o tempo das cavernas. Sabendo disso, poucas vezes me indispus ou se indispuseram comigo nesses anos de convívio virtual nas redes.

Hoje, mesmo depois de tanto tempo, me surpreendi um pouco. Infelizmente, para mal. Tinha adicionado em uma dessas redes um senhor gaúcho, escritor com exímio domínio da língua portuguesa, por quem eu tinha bastante admiração. Não o conhecia profundamente, mas procurava ler sempre que podia seus escritos e deles absorver o máximo de informação. Em nossa etérea convivência virtual, percebi algumas vezes certa rabugice com relação a certos assuntos, mas nada que comprometesse a fundo minha admiração por suas qualidades, que já descrevi. Eis que em uma de nossas trocas de mensagens, percebi em seu discurso certo ranço, certa insistência fazer uma demonização extrema da influência americana nos eventos que levaram ao golpe militar de 1964. Apesar de ter lido sobre e conhecer alguns detalhes sobre essa influência, e sobre a política americana para a América Latina naquele período, na época da citada conversa dei pouca atenção a isto, pois foi uma nuance de opinião que apareceu de forma lateral na discussão de outro assunto. Mas ficou registrada essa insistência teimosa, coisa que não combinava muito bem com uma pessoa de quem se depreendia uma inteligência mais ponderada, menos extremista ou não tão dada a simplismos maniqueístas.

Em uma troca de comentários, dei uma opinião sobre o que chamei simbolicamente de “DNA do Brasil”. Afirmei simbolicamente que o brasileiro, (enquanto resultado de uma soma, e não como indivíduo) possuía características que eram muito presentes e perenes, desde o período da colônia, durante o império, república, ditadura militar, e até hoje, que pouco mudaram. Afirmei que pouco foi feito ou estimulado por quem quer que estivesse no poder durante nesses quinhentos e tantos anos para que essas características quando boas, sobressaíssem e quando ruins, fossem trabalhadas no intuito de melhorar. O velho senhor (que aparentemente se esforçava para destruir a boa imagem que tinha aos meus olhos), procurou encurralar-me em meus argumentos, afirmando que minha falta de estudo histórico (decidida por ele como líquida e certa através do simples fato de eu não concordar com seus argumentos) impedia que eu continuasse uma conversa, que eu deveria estudar mais a história de nosso país. Montado em um desespero eqüino para tentar derrubar meus argumentos, que apresentei com a máxima serenidade, tornou-se monocórdio em suas afirmações. Arvorou-se em uma empáfia desmesurada e vazia baseada na repetição “do quanto ele estudou na vida”, e chegou ao ponto ridículo de acusar-me de racismo contra os negros. Isso por eu mencionar a valorização que o brasileiro dá àquela famosa e macunaímica dose de malemolência, preguiça e “malandragem inocente” como algo que sempre foi valioso para os poderosos no sentido de manter o povo dócil, avesso ao progresso pessoal e à consciência de mobilização. Vi naquele senhor brados por um patriotismo realmente senil, que destoava de seus textos tão lúcidos. Li em seus comentários (cada vez mais absurdos) sugestões de que o ufanismo cego é a saída, de que a mais profunda negação de valores universais é a solução e de que aparentemente, só abraçando como se fossem qualidades todos os nossos mais vergonhosos defeitos, estaríamos no caminho certo. Desisti.

Procurei defender-me com retidão da injusta acusação de racismo, tratei de pilhá-lo por ter tentado comigo um artifício de argumentação tão basal, e procurei uma oportunidade para dar a discussão por encerrada. Antes disso, meu antes prezado interlocutor ainda teve tempo de dirigir-me algumas linhas malcriadas e recomendar-me que fosse estudar mais e passasse bem. Fui obrigado a finalizar minha participação nessa infrutífera discussão confessando que se fosse para chegar ao fim de minha vida um velho rabugento, monocórdio, de mente empedernida e com idéias tão bolorentas e pouco imaginativas quanto aquelas que ele tinha me apresentado ali, preferia estudar outras coisas. No fim, achei o saldo positivo. Pude exercitar meus argumentos em uma discussão até certo ponto de bom nível. Pude sentir-me mais seguro de que a temperança é um caminho bem melhor que o extremismo. Pude reafirmar minha desconfiança de que o avançar dos anos não traz a mesma carga de sabedoria a todos nós. E pude arrumar assunto para escrever mais um texto, exercitar e procurar chegar um dia em que escreva tão bem quanto o velho lá, só que com a mente mais aberta. Lembrei que sempre gostei muito de todos os velhos com que convivi. Mas também lembrei que sempre demonstrei uma enorme insatisfação com velhos mal-educados. Espero apenas que quando eu chegar lá, a dupla Seu Alzheimer e Dona Esclerose mantenha-se longe dos meus queridos neurônios, pois estando lúcido, ao menos um velho educado eu garanto que serei.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Stake Land


Há filmes que nos fazem pensar, sem que tenhamos esperado por isso. Alguns conseguem essa façanha de mesmo não sendo especialmente bons, inéditos, artisticamente destacados, ou vindos de criadores famosos. Às vezes, basta o fato de lançarem uma nova luz sobre velhas questões, ou de saberem nos levar, mesmo que sem querer, a um mundo diferente do nosso. Recentemente assistindo ao despretensioso filme Stake Land, acabei encontrando não só um entretenimento de boa qualidade, mas alguns pontos para se refletir também.

Neste filme de terror de 2010, a peculiaridade já começa pelo próprio gênero. Apesar de estarem presentes todo o clima e os elementos necessários a um filme do tipo, algo chama a atenção a um observador mais atento, desde o princípio. O diretor Jim Mickle procurou (sabiamente, a meu ver) contemplar a história de uma forma mais intimista, com a câmera reproduzindo o olhar sensível e o "tempo para respirar" muito mais comum nos filmes de drama do que nos frenéticos e simplistas filmes de terror com os quais esse poderia ser facilmente confundido. Ao escolher esse caminho, Mickle conseguiu pontos a mais, elevando do que poderia ser apenas mais um filme do gênero "epidemia de vampiros bestiais" para um patamar acima. O resultado é uma jornada melancólica e pós-apocalíptica com tons de A Estrada e O Livro de Eli,  onde o foco principal não está nos famigerados vampiros, mas na busca por um local melhor para se viver, numa sociedade que desmorona completamente.

É justamente aí que começa a parte "para pensar" que mencionei no início do texto. Vemos que os criadores Jim Mickle e Nick Damici (respectivamente diretor, co-roteiristas e ator principal) conseguiram fazer dentro de um filme de terror que poderia ser visto somente como isso, uma alegoria bastante precisa e ácida do atual momento dos Estados Unidos da América. Temos o jovem Martin, que representa o futuro, o inseguro e despreparado jovem americano comum, criado com a intenção de ser e viver feliz, mas completamente incerto de seu amanhã. Martin acompanha e é orientado (e protegido) pelo misterioso Mister, a epítome do passado americano, o cowboy calado, o guerreiro cuja única função é sobreviver, o homem que faz o que um homem tem que fazer e que já não vê lugar para si no mundo caótico em que vive. A sociedade em total ruína, os vampiros perambulando pelo país como meros animais que se alimentam do sangue das pessoas comuns, seriam algo como  a parcela da sociedade atual perdida para o crime e as drogas, ou em última análise, para a própria imbecilidade, improdutividade e desemprego crescente daquela sociedade. E no cenário do ideologicamente atrasado meio-oeste americano, outras alegorias tomam forma: o fanatismo religioso, as seitas que surgem utilizando o nome de um Deus que aparentemente virou o rosto para outro lado. O que ainda não foi  consumido pela destruição bestial dos vampiros é dominado por seitas que usam o nome de Deus para buscar seus próprios objetivos insanos, uma representação clara do retrocesso e da ultra-religiosidade direitista ferrenha que volta e meia deixa os próprios EUA perplexos. As seitas do filme representam bem o nosso momento atual, não só nos EUA mas em todos os países onde neopentecostais e diversas outras denominações cristãs,  florescem com sua canhestrice, preconceitos arraigados, e a busca por óbvios interesses financeiros que apenas a seus líderes carismáticos interessam.

E onde está a solução? De forma ao mesmo tempo inteligente e autocrítica, o roteiro evidencia que a viagem sempre em direção ao norte é a forma de desistir de todo aquele país destroçado, que não se cumpriu. No norte, está a "terra prometida", está o Canadá. É o americano sendo obrigado a desconstruir toda a sua auto-imagem e arrogância. O filme acerta em mostrar um punhado de sobreviventes atravessando milhas e milhas de amargura em direção ao antes desprezado vizinho, agora transformado na única esperança de algum futuro melhor. Como eu disse antes, é bom encontrar no meio de uma diversão despretensiosa, algo que nos faça pensar. Stake Land, um filme que merece ser comentado por conta dessa boa surpresa.