quinta-feira, 2 de junho de 2011

Uma crônica sobre nada


Ele acorda meio moído, como se saísse aos poucos de dentro de um caminhão de frigorífico que despencou ribanceira abaixo. O despertador não quer saber de nada, e continua apitando freneticamente, como uma mulher mal-comida. Sem perceber, ele passa uns 5 minutos tentando ignorar o despertador, fazendo cara de não tô nem aí. Estica o braço para abrir as persianas e deixar um pouco de luz entrar no quarto. Olha pro lado, vê a hora. Um minuto passa no visor. O vizinho de baixo já está em atividade. O rádio ligado, tocando um pagode que nunca deveria ter sido composto, de tamanha afronta que representa ao gênero musical. Por sorte a música está em seus momentos finais. Entra a locutora da rádio, dizendo que a rádio é um amor. Ele fica com vontade de mandar a rádio, o compositor da música e a locutora tomarem no cu. Pensando nisso ele levanta da cama.

Pega uma cueca na gaveta, liga seu próprio rádio e se dirige ao banheiro. No rádio, o programa de notícias com locutores metidos a engraçadinhos. Chega até a ser divertido porque os locutores parecem tão fora de contexto que chegam a ser divertidos. É como de um cara que conta uma piada sem graça mas que não percebe que estão rindo dele mesmo e não da piada.

Banho, barba, escovar os dentes, roupa. O maldito inverno não existe no Rio de Janeiro. Um sol que já denuncia um calor incômodo na hora do almoço aparece, tão insistente quanto o pagode que tocava no rádio do vizinho. Ele chega ao ponto de ônibus no horário de sempre, nem muito adiantado nem atrasado ainda, dependendo da boa vontade do trânsito de qualquer maneira. O ônibus comum demora o suficiente para fazê-lo ficar com vontade de pegar o executivo. Mas é besteira. Pagar mais caro, por um pouco mais de conforto, mas ainda assim chegando atrasado se o trânsito estiver ruim não vale a pena.

No ônibus, ele passa pela praia. A visão de um mar que reflete o azul do céu faz com que ele quase se sinta feliz. Não que não tenha seus motivos. Mas para se sentir feliz não basta o mar refletindo o sol. Precisa só um pouquinho mais.

Publicado no Recanto das Letras em 25/06/2006

Aprendendo e Vivendo III


Miguel tentou ignorar o gosto metálico que invadia sua boca. Mas como em todas as outras vezes, aquele gosto estranho chegava assiduamente. Aquele gosto de alumínio. Aquela sensação imbecil de ter mastigado uma lata de refrigerante, que nunca teve sequer uma gota de refrigerante dentro. Como em todas as outras vezes, ele sabia que por mais incômodo que fosse, aquele gosto de metal era apenas um símbolo. Era como o porta-estandarte de um exército de estranhas mágoas e sensações ruins. Alas e alas de lembranças paramentadas em armaduras do mais brilhante ódio passariam em marcha diante de seus olhos. Por dias. Um espetáculo angustiante.

Miguel olhou profundamente nos olhos de Mariana, mas era como em todas as outras vezes. Conseguia perceber o vazio que cada movimento nervoso daquele olhar transmitia. Conseguia ler com clareza as palavras ocultas por trás de cada desvio de olhar. Conseguia cronometrar com precisão de centésimos o quanto tempo além da sinceridade ela lhe exibia seus cada vez mais raros sorrisos. Como em todas as outras vezes, Miguel sentia-se como o típico perdedor, aquele estereótipo cartunesco da primeira metade do século XX. Nu, apenas com um simbólico barril de madeira em torno do corpo, enquanto Mariana sentada em alguma mesa igualmente simbólica contava os valores ganhos no jogo.

Dentre as alas que desfilavam na melancólica parada das lembranças, havia a do sorriso fácil. O sorriso que hoje vinha em escasso racionamento, há pouco tempo atrás fluía daqueles lábios com facilidade quase indecente. Outra ala vinha orgulhosamente representando os olhares e suspiros, os entendimentos sem palavra alguma que fizeram com que Miguel jogasse anos de um bem construído ceticismo no lixo e acreditasse em telepatia, predestinação e vidas passadas. Como em todas as outras vezes, Miguel sentia-se curvar sob o peso do próprio tempo, sob a enormidade daqueles outrora parcos seis meses, agora convertidos em seis milênios, seis mil toneladas, seis milhões de anos-luz.

Bastaram algumas palavras de Mariana. Algumas palavras, uma ou outra atitude, um ou outro olhar desviado. Como em todas as outras vezes, Miguel ignorou seu hipotálamo a avisar-lhe que aquele “eu te amo” veio estranhamente cedo. Como em todas as outras vezes, colocou todas as suas fichas em jogo. Como em todas as outras vezes, não fez um backup externo de seus valiosos sentimentos. E Mariana, alheia a isso tudo simplesmente jogou seu jogo. De uma declaração de amor a um não-sei-estou-tão-confusa, flutuou com a leveza mortal de uma espada samurai, afiada o suficiente para cortar uma peça de seda em pleno ar. Como em todas as outras vezes, Miguel não percebia o menor tom de arrependimento, ou de consternação vindo do lado de lá. Talvez o que mais fazia com que se sentisse ferido fosse essa indiferença extrema, essa frieza que Mariana transmitia em cada movimento agora. Era como se a cada olhar desviado, a cada gesto nervoso, seu ser inteiro afirmasse categoricamente para o esmagado Miguel: Não há nada que eu possa fazer por você.

Como em todas as outras vezes, Miguel entoou a liturgia de seu desamor. Desde as clássicas perguntas sobre suas chances futuras, até o humilhante ato de contrição de esperar pela possibilidade de uma amizade improvável. Como em todas as outras vezes, ele se odiou mais um pouco por querer tanto e conquistar tão pouco. Como em todas as outras vezes, Miguel chorou amaldiçoando-se mil vezes e ao seu eterno retorno, a cada lágrima derramada. Como em todas as outras vezes, Miguel prometeu a si mesmo que não faria igual da próxima vez. E como em todas as outras vezes, fracassou e se tornou nada mais que matéria prima para canções baratas de uma banda indie qualquer.