sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A história de Kabaro - Parte 02



Na cerimônia dos nomes, cada criança era submetida à reza dos mgangas da tribo. Aguardava-se que o espírito-divindade que a tivesse escolhido soprasse um nome no ouvido do mganga, que diria em voz alta pra toda a tribo. Enquanto o mganga mais velho somente observava e concordava com cada escolha de nome, os outros mgangas realizavam danças rituais e bebiam uma aguardente forte que só eles sabiam fazer. Meu pai dizia que era parecido com o que se bebia em casa, mas que tinha ingredientes e ervas que só os mgangas conheciam, e fazia eles ouvirem a voz das divindades com mais facilidade.

Faltavam poucas crianças quando chegou a minha vez. Na hora de ser levado à frente de um dos xamãs, senti medo do mganga que iria me dar o nome ser um dos que não gostavam de mim. Fiquei muito nervoso, o que fez minha barriga doer um pouco, e eu peidei. Pensei com minha mente de criança se alguém ia perceber e se isso ia atrapalhar minha vida. Pensei se minha irmã percebeu, mas ela estava tão quieta que eu também me distraí do peido, porque aconteceu algo que chamou minha atenção: a música mudou.

Percebi que depois da música mudar, era o mganga mais velho que tinha se levantado, e que era sua voz antes silenciosa que mudou o tom do canto. Fiquei mais nervoso ainda, achei que o ancião tinha levantado porque eu tinha feito alguma coisa errada, e acabei peidando de novo. Só me senti um pouco mais calmo quando percebi que ao vir na minha direção, ele estava sorridente.

O velho mganga era um homem muito sério e respeitado. Sua barba branca e seu cabelo também rspeitavelmente branco (que circundava a cabeça mas faltava em cima) fizeram com que desde que eu aprendera a falar, quando zanzava pela aldeia, o chamasse de avô. Acho que esse fato tinha feito com que ele gostasse de mim, posto que eu não tinha a quem chamar de avô. Tanto meu pai quanto minha mãe não tinham mais seus pais vivos, desde antes de eu nascer. O velho mganga sabia que eu o chamava de avô de forma espontânea, jamais alguém tivera dito para que eu fizesse isso. Minha irmã contava que quando minha mãe tentou me corrigir uma vez, o próprio velho sorriu e disse a ela que não precisava. Assim, com aquele mesmo sorriso, o mganga-avô veio até onde estávamos e parou na minha frente.

O canto continuou e ele bebeu um gole do aguardente na boca da cabaça que outro mganga passou para ele. Ele abaixou na minha frente, seus olhos amarelados de velho brilhando e o seu bafo de bebida, que eu não achei ruim. Disse pra mim:

“Criança, disseram que você não teria nome porque nenhuma divindade te quis. Eu digo que não. Eu ouvi as divindades e elas disseram que uma divindade tomou posse de seu espírito e iria andar a seu lado. Mas era uma divindade que as nossas próprias divindades respeitam, e não ousam falar seu nome. Disseram que quando você estivesse pronto, iria saber seu nome. Até esse dia chegar, o seu nome sou eu quem vai dar.”

“Assim feito, em honra à família de seus pais, e dos pais de seus pais, eu te dou o nome de Kabaro, da casa dos Camba.”

(continua...)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A história de Kabaro – Parte 01



Quando nasci, meu pai me levou pra fora da cabana e me ergueu em direção ao céu, como era costume naquela época e lugar. Meu povo acreditava naquele como a forma de nossas divindades nos vissem pela primeira vez, e assim uma delas escolheria o recém-nascido como protegido. Desse modo, mais tarde os mgangas da tribo saberiam dizer qual era o meu protetor, o espírito que andaria a meu lado. No dia em que nasci, meu pai fez o que todo homem do nosso povo fazia quando nascia um filho ou filha, desde tempos que não eram contados em canções. Entretanto, meu pai foi testemunha de algo que nunca tinha acontecido antes, e que talvez nunca tenha acontecido depois. Ao me erguer ao céu, coisas estranhas aconteceram. O dia se fez noite, e a noite se fez dia novamente. A chuva caiu, e rápida passou. O vento soprou forte como nunca havia soprado naquela época do ano, e veloz como veio, veloz se foi. Na savana, o grito dos elefantes ergueu-se tão alto quanto o som do trovão que ressoou no firmamento. Na orla da floresta, ouviu-se o roncar dos leopardos e os babuínos fugiram em louca gritaria. As divindades vieram, mas quem me escolheu não era nenhuma divindade conhecida.

Apesar da superstição de meu pai e da desconfiança inicial de muitos da tribo, cresci forte, saudável e amado por minha mãe e minhas irmãs. O passar do tempo e minha perfeita normalidade fazia com que aos poucos, todos deixassem de lado a cisma e me tratassem como eram tratadas todas as crianças da tribo. Fui crescendo e me tornava um garoto forte, esperto e sorridente. À medida que o tempo passava, todos na tribo me queriam bem. Eu era rápido na corrida, tinha um sorriso que encantava até as velhas mais rabugentas e nunca fazia nada que incomodasse nas tarefas dos homens, por mais que gostasse de ficar zanzando no meio deles e observando tudo que faziam. Aprendia com facilidade, era prestativo e sempre levava e trazia quaisquer recados ou mandados que me pedissem. Para felicidade de minha mãe e irmãs, e crescente contentamento de meu pai, me tornei uma criança como qualquer outra, sem nenhuma marca do estranho acontecimento que cercou a aurora de minha vida.

Quando chegou o dia da cerimônia em que ganharia meu nome, o mganga mais velho da tribo me olhou com bons olhos. Chamou meu pai em sua cabana para uma conversa e disse coisas para ele. Não sei exatamente o que foi dito nesse dia, mas sei que daquele dia em diante, meu pai deixou de lado qualquer resto de desconfiança que tinha e se tornou um homem mais afável comigo, com minha mãe e minhas irmãs. Os mgangas me chamaram naquele dia e junto com outras crianças da minha idade, me coloquei diante da fogueira cerimonial. Cada um de nós acompanhado de um irmão ou irmã mais velho, ou no caso dos que eram primogênitos ou filhos únicos, do pai ou da mãe, aguardávamos sentindo que aquele era um momento importante. Mesmo que nossa pouca idade ainda não permitisse que entendêssemos plenamente por que. Até aquela idade, eu só era conhecido como filho de meu pai, e meu único nome era o apelido usado em casa, que minha irmã tinha me dado. Até ali, eu era apenas Panya, um nome sem importância, mas o único que eu tinha.

(continua...)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Prometheus de Ridley Scott, aquele seu velho colega



Finalmente assisti ao tão falado “Prometheus”, filme que marcaria com pompa e circunstância o retorno de Ridley Scott ao gênero Sci-Fi, tantos anos após os emblemáticos Blade Runner e Alien. Procurei esperar passar o período dos rumores, evitar as críticas e ignorar todo o buxixo costumeiro que aparece normalmente à época de lançamentos, ainda mais lançamentos envolvidos por esse tipo de mística. Tornei minha desatenção ainda mais cuidadosa por conta do falatório ruidoso que fui percebendo à época do lançamento deste filme. Já acho todo e qualquer hype um ruído desnecessário à apreciação, que se dirá do hype em cima de um diretor que produziu obras tão cultuadas e admiradas quanto as citadas ali em cima. Quis que minha apreciação fosse a mais pessoal possível, e em outras palavras, queria bastante ver o que Mr. Scott tinha pra me mostrar, dane-se aí o que a crítica internacional tivesse a me dizer desta vez.

Do filme, sabia apenas que além da temática, haveriam correlações entre este e a história de Alien, o primeiro onde  Sigourney Weaver penou pela primeira vez na mão da tinhosa raça de criaturas alienígenas. Queria ver como iriam costurar tudo isso com uma história nova, tantos anos depois. E gostei de quase tudo. Entre mortos, feridos, infectados e explodidos, salvaram-se muito mais coisas do que (depois fui ficar sabendo) a crítica em geral avaliou de certa forma negativamente.

Atores corretos, gostei da atriz sueca Noomi Rapace reeditando um personagem central feminino com um peso semelhante à tenente Ripley de Sigourney Weaver do já clássico Alien, de 1979. Gostei do alemão Michael Fassbender no papel do androide da vez, com detalhes de roteiro que trouxeram certa sofisticação ao filme, homenageando rasgadamente não só toda uma linhagem de atores ingleses, mas também um certo filme clássico, interpretado por uma certa lenda do cinema, passado num certo cenário desértico. Gostei do elenco de apoio, bastante correto. A única exceção foi a utilização do (excelente ator) Guy Pearce para o papel de um ancião, que acredito ter ficado grotesco sob quilos de maquiagem e não ter contribuído em nada para o personagem. Poderia-se lançar mão de inúmeros e talentosos atores idosos (se não em idade avançada ao extremo, pelo menos que já estivessem na casa dos 70/80) para este papel em específico, o que iria contribuir tanto com estofo dramático quanto com um acabamento visual mais crível.

Nem tudo são flores. Vivemos numa época tão árida para o cinema quanto algumas paisagens alienígenas sugerem ser. Se o diretor vem de um período de grande criatividade e tão prolífico em bom cinema, é bom lembrar que a produção, o roteiro, as empresas por trás do show, são todos da boa e velha década de 10 do século 21. Sendo assim não há como escapar, por mais que se tentasse, de algumas soluções de roteiro capengas, de alguns furos narrativos evitáveis e de algumas cenas quase constrangedoras. Certas questões filosóficas são tão mal trabalhadas que deixam gosto de massa de pão crua na boca. Alguns ganchos que poderiam ser otimamente aproveitados ficam pendurados no vazio. Prepare-se para cenas dignas de filmes muito menos pretensiosos e infinitamente mais baratos, ainda que embrulhadas em papel de luxo.

No fim da sessão, fica aquela sensação de reencontro com um velho colega do tempo de colégio ou faculdade. Só que do tipo de encontro onde você acaba percebendo que a lembrança das aventuras daquela época é bem mais saborosa do que as histórias recentes que seu colega tem pra contar, por mais interessantes e novas que elas aparentemente sejam. Para fazer uma média final, misture o carinho das histórias antigas com o brilho visual e o frescor (ainda que meio esvaziado) das novas histórias e dê um tapa nas costas do velho Ridley. A média final não foi tão alta quanto nos velhos tempos, mas no fim das contas, foi positiva.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Laudo médico do fim de uma relação

©angrymedic.blogspot.com
O calor de uma tarde a me envolver, o verão escaldante que se aproxima e a calma de um coração tranqüilo. Entre um paciente e outro, me permito alguns minutos de descanso, dentro do consultório. Desligo o ar-condicionado congelante, abro um pouco a janela para respirar o dia. Poluído, sonoro, mas ainda assim vivo. Real. 

Pela janela, enxergo ocasionalmente uma pequena figura humana aparecendo na janela de um dos prédios lá do outro lado da avenida. Penso em você... Espere. Pensando bem, sendo sincero mesmo, não penso não. É mentira. Eu penso sim, na falta que você não me faz. Eu penso no quanto minha vida melhorou depois que você deixou de fazer parte dela, no quanto a paz passou a fazer parte dos meus dias depois que te arranquei a fórceps do meu círculo de convivências. No quanto pude me saber leve e livre de amarras e de surtos em todos os relacionamentos, de amizades e de amores que tive depois do tempo em que passamos juntos. 

Não foi um procedimento tranqüilo, uma operação fácil. Sua obsessão e não-conformismo em deixar de existir para mim fazia com que cada tentativa de contato, cada telefonema, cada SMS, cada e-mail, simbolizasse uma ofensa à minha decisão de não ter alguém como você fazendo parte da minha vida. Um dia, deixei de tentar responder, deixei de estimular sua existência, passei ao invés de extirpar cirurgicamente sua presença, simplesmente parar de oferecer alimento às suas tentativas de contatos, fossem quais fossem. Deixei pra lá o meu inconformismo, a incapacidade que eu tinha de entender porque você insistia de maneira tão enlouquecida. Deixei pra lá o incômodo que causavam suas (felizmente) cada vez menos freqüentes tentativas de contato. Deixei pra lá tudo que você representou, todo o stress que causou, toda a irritação acumulada, e apenas investi no esforço de fazer com que toda e qualquer influência tua deixasse de existir na minha vida.

 Mentiras, imaturidades, desesperos de causa, ansiedades, ciúmes, possessividades e apegos de todo e qualquer tipo são para os relacionamentos, os equivalentes à gordura, ao sedentarismo, à pressão alta, ao colesterol, ao álcool e ao cigarro para o corpo. Essa foi a causa da sua morte, pelo menos para mim. Palavra de médico.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Aprendendo e Vivendo VI - Parte 02

©sxc.hu


Miguel se olha no espelho do elevador. Se acha um pouco mais gordo, um pouco mais desajeitado que a imagem de si que carrega na memória mais recente. Do elevador antigo mas bem conservado de prédio antigo e igualmente bem conservado, já consegue sentir o aroma da casa de Alice. Um cheiro que lembra certas casas de sua infância. Cheiro de casa de classe, cheiro de coisas antigas e de matérias nobres. Mas a presença de Alice naquele apartamento (que herdou da mãe falecida) também contribui para os aromas. O cheiro de coisas importadas, coisas novas e coloridas, e coisas não tão novas mas em excelente estado. Alice espera na porta da sala assim que o elevador se abre. Os dois se abraçam com certa cerimônia. Ela tem aquele olhar de quem não quer ouvir palavras. Um olhar de quem não dormiu bem, de quem não está com paciência, um olhar de quem tem o que reclamar da vida. Mesmo aquele momento em que as mãos de Miguel escorregam para a bela curva da cintura de Alice, ele não sente o mesmo entusiasmo de meses atrás.
Alice, dez anos mais velha que ele “melhor que muita menina aí” – pensa seu inconsciente, porém muito mais cheia de questões que qualquer uma que você tenha conhecido, grita sua consciência, da boca de cena daquele pequeno teatro. Um namoro improvável, que começou mutuamente entusiasmado e brincante, resgatando uma juventude que era incomum até para Miguel, o mais novo dos dois. Alice cujo olhar silencioso e quase molhado o recebia em seu apartamento, naquele abraço gostoso que levava suas mãos até a curva da cintura automaticamente, e que fazia com que a trouxesse para junto de si num beijo sincero e alegre. E o silêncio continuado daquele jeito dela descansar o rosto em seu peito como se fosse uma adolescente e não uma bela mulher de trinta e oito anos.
Hoje, Miguel pensava com certa nostalgia daquele tempo tão próximo e ao mesmo tempo tão distante, separado por séculos de desgaste, causado pelas excessivas crises de melancolia e instabilidades do humor de Alice. O olhar que antes comunicava doçura, hoje cada vez mais apenas fazia com que ele sentisse certa vontade de se afastar dali. A mente elaborando planos de fuga, meios de se safar daquela relação sem que ninguém percebesse, nem ele mesmo se possível.
Às vezes se flagrava demorando na livraria próxima à casa dela, protelando um pouco sua chegada. Era uma forma de distrair seu pensamento e absorver coisas das quais poderia talvez lembrar num dos momentos de melancolia onde ela se demoraria reclamando de coisas das quais gostava até a semana anterior. E que talvez voltaria a gostar na seguinte. E se o sexo ainda era algo que considerava bom, creditava isso muito mais a seu tesão físico, por detalhes de Alice que tanto lhe agradavam, do que por um envolvimento emocional que colaborasse para seu prazer ao lado dela. Com o passar do tempo , aquela melancolia estranha de Alice começou a criar uma exasperação simbólica dentro dele. Não que de fato sentisse vontade de brigar ou algo parecido. Não que sentisse vontade de sacudi-la de fato. Mas a sensação sublimada de tudo aquilo preso dentro de si o fazia sentir uma vontade cada vez maior de ir embora. De deixar Alice para trás, de não ter que a encontrar mais, de não ter que ouvir seus assuntos cada vez mais fúteis, de não ter que participar de conversas vazias sobre coisas boas do primeiro mundo, sobre marcas boas de lá de fora em comparação com marcas boas daqui.
Agora, ali na entrada do apartamento, Miguel esperava simbolicamente a roda da fortuna imaginária girar para saber o resultado de hoje. Seria premiado com uma noite em que a disposição de Alice estaria boa, o humor agradável e o sorriso viria fácil? Ou a roda pararia num espaço reservado para os cada vez mais frequentes períodos de reclamações da vida, de melancolia com pouca justificativa e de pouca ou nenhuma disposição para o sexo, ou ao menos para o carinho entre namorados que eram? Entrou no apartamento, e suspenso sobre a porta, um suspiro da mais pura falta de paciência com tudo aquilo. Naquela noite conversariam, e no dia seguinte, sairia pela porta daquele apartamento pela última vez.

domingo, 16 de setembro de 2012

O Pagode Ruim

©contracorrenteza.com

             Voltava cansado pra casa. Sexta-feira até tarde no trabalho. Semana cheia, bastante serviço, muitas responsabilidades, compromissos a cumprir e ainda um rabicho de trabalho que sobraria para a semana próxima. Cansado da falta de opções para comer alguma coisa lá pela cidade. Naquele horário era mais fácil se alimentar de cerveja do que achar para comer qualquer coisa ligeiramente saudável. A cidade escura, nervosa e já esvaziada, retirava esperanças de se sentir segura apenas da fé em que todos os bandidos e vagabundos de ocasião naquele momento estariam bebendo, festejando ou procurando avidamente por ambas as coisas. No rosto de todos os que saíram do trabalho tarde, um cansaço semelhante. Cansado do ônibus, que ainda pegou um resto de trânsito no caminho, mesmo tendo saído após o horário do rush.
             Caminho para casa, escuro também. Mais vazio que nos outros dias, a sensação de que todos que não tinham ido pra noite, a caminho estavam. Passei pela peixaria, onde o peixeiro de aparência indígena, mas com cabelos estranhamente crespos, fazia a mal-lavada higiene de seu local de trabalho. Passei pelo primeiro botequim, com seus azulejos enormes e alumínios desproporcionais, que dão ao lugar uma aparência engraçada de banheiro de rodoviária ou de posto de gasolina. A habitual coleção de papudos variados, bêbados inchados e além de qualquer ajuda, ou trabalhadores de olhos amarelos com os pés cinzentos enfiados em chinelos rider, a olhar aparentemente atentos para o aparelho de TV suspenso no giro-visão. Na sexta-feira o elenco habitual do primeiro botequim é reforçado pela presença de algumas mulheres, tão peculiares e cinzentas quanto os atores principais da comédia. Chinelos com pequenas flores contrastando com a magreza das canelas e o inchaço das barrigas. Elas sorriem com bocas desfalcadas, times de futebol de salão onde deveriam ser de futebol de campo. Requebram as cadeiras numa imitação das moças talvez até bonitas que tinham sido, impiedosos e multiplicados anos atrás. Cada ano de suas vidas cobrava em cachaça e cigarros e noites mal dormidas os juros e correção monetária, abatidos em suas aparências. Algumas, solidárias a seus companheiros já semiadormecem num estado de embriaguez avançada, que necessitará de ajuda para sua remoção quando der a hora do bar fechar as portas.
             No calçadão, os fritadores de salgadinhos, vendedores de batatas-fritas e yakissoba disputam a atenção de um público mais jovem, alguns apenas rodando a vizinhança, outros aparentemente a caminho de alguma noitada em específico. Volta e meia um carro para junto à calçada para fazer um pedido, na versão favela do conceito de drive-thru. O bar e restaurante mais à frente, cuja gerente usa aquele impressionante penteado Roberto Carlos no início dos anos 80, colocou um cantor de churrascaria para fazer uma música ao vivo. As mesas na calçada acomodam uma engraçada e heterogênea mistura de motoristas de ônibus e suas amantes, aposentados moradores das ruas das redondezas e suas senhoras, algumas famílias, e casais de amigas da gerente. No caso dos casais de mulheres, um detalhe não poderia deixar de ser percebido. Em todos os caos, pelo menos uma das duas à mesa (a exemplo da própria gerente do estabelecimento também) representa todo um estereótipo não só de mulher masculinizada, mas de feiura extrema, de mau gosto estético e de atitude machista. A postura, o comportamento e a atitude territorial para com suas namoradas se exibem ali como um conjunto grotesco, que até mesmo entre os homens já se tornou pouco mais que uma lembrança de um século que passou. Mas ali, naquele ambiente, as “maridas” continuam mantendo a tradição do machismo viva, tão dignas de estranhamento como se víssemos estegossauros andando entre os elefantes de hoje nas savanas da áfrica.
             À frente, o homem da banca de legumes que jamais sorri recolhe seu material. Continua sem jamais sorrir, conversa com muitas pessoas, mas não esboça uma única sombra de sorriso. Seja de noite ou de dia. No meu mais profundo íntimo, temo que o motivo da incapacidade de esboçar o tal sorriso seja por passar muitos anos nessa vizinhança. Secretamente temo que o tempo em que passo por aqui já esteja diminuindo meus sorrisos também, como se fosse uma praga local.
             Entro na minha rua, e a obra inacabada que se converteu em bar exibe um cartaz em papelão: “hoje 19:00 – Pagode”.
O som alto e mal regulado, Mesas no interior do bar-obra, e algumas na calçada oposta, deixando a rua para os carros passarem. Rapazes cantando uma música que conheço, de um artista que consigo identificar mesmo não sendo nem de longe um conhecedor do gênero.Mas a cantoria é tão pobre, a qualidade dos instrumentistas tão rasteira, que mesmo as periguetes que sempre aparecem com seus vestidinhos característicos em qualquer lugar onde estejam escritas as palavras “funk” ou “pagode”, parecem um tanto desanimadas. Sabendo do caráter inflamável que anima e alimenta os rabos periguéticos, considerei esse um sinal inconfundível da baixa qualidade daquele pagode. Uma das moças, uma morena de corpo bem torneado, cabelos mal alisados e uma cicatriz perceptível além de um simples charme numa das bochechas, tentava sambar ao ritmo da música. Seu rosto denunciava aquele olhar de quem procura o próximo lugar para ir, porque onde está já deu. Talvez esperasse uma carona, uma amiga ou já tivesse combinado uma escapada dali. Passei o mais rápido que pude, para escapar do cansaço, da desafinação e dos vapores solitários e pouco amistosos daquela sexta-feira.
             Ao virar a curva da rua, a poucos metros da entrada da minha vila, meu maior motivo de alegria foi descobrir que a configuração geográfica da vizinhança impedia o som daquele pagode miserável de chegar até a vila. No fim daquele dia, senti certo alívio ao chegar em casa e poder desfrutar em primeiro plano do som do matagal que fica no terreno atrás da vila, e apenas dos sons normais vindos das casas da vizinhança. Em algum lugar na vila, alguém se arrumava para sair, ouvindo uma seleção de suaves hits internacionais dos anos 80, e naquele momento eu agradeci silenciosamente aos vizinhos sem mesmo saber quem eram. E tive uma boa noite de descanso.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Aprendendo e Vivendo VI - Parte 01



Miguel olhava o seu reflexo mal refletido na vidraça do ônibus. Lá fora, a estrada passava em alta velocidade, àrvores e cercas e vacas e cupinzeiros e casinhas. Numa viagem como aquela, seus sentimentos aproveitavam aqueles momentos para assombrá-lo como fantasmas zombeteiros. Pensava em Carlinha, não conseguia evitar. Um ano, apenas um ano depois, o que era a promissora perspectiva de um amor pra vida toda deixava apenas um gosto amargo na boca. Miguel se perguntava, ou perguntava às nuvens, ou ao sol, ou às montanhas no fundo da paisagem que passava em velocidade diante das janelas do ônibus, para onde tinha ido o amor que tanto perseguia? Já tinha se ferido tantas vezes, já tinha se iludido tantas vezes, que começava a perder as esperanças. Começava a achar que essa coisa de amor era um jogo de cassino. Uma roleta viciada onde a casa sempre ganha, deixando apenas algumas pequenas vitórias permitidas, para que o jogador se iluda e continue acreditando na possibilidade de quebrar a banca.

Conhecera Carlinha numa fase ótima. Já tinha se refeito do rompimento com Mariana, sua autoestima já estava novamente em ordem, voltara a sair ocasionalmente com seus amigos, apesar de manter-se o mais não-boêmio possível, como era característica sua. Mas tinha em seus círculos de amizade aquele pessoal que preferia programas diurnos no fim de semana, uma turma bastante variada, e numa dessas, num desses programas diurnos, seu caminho e o de Carlinha se cruzaram.

Vinha naquela fase boa, sem pensar muito em namorar, em se relacionar, não sentindo aquele vazio que o tinha arrastado quase obsessivamente a procurar o namoro, na época de Mariana. Tinha decidido que depois dela, iria realmente dar um tempo. E foi o que fez. O tempo dado lhe rendeu frutos, dedicou-se mais a alguns projetos extras que o pessoal da empresa vinha tocando, o que chamou a atenção da chefia. Em certo momento, foi solicitada a presença de alguém para viajar e apresentar um dos novos projetos em várias filiais pelo país afora, e aproveitou a oportunidade. Se ofereceu prontamente. As apresentações foram um sucesso, os chefes estavam contentes com seu desempenho e conseguiu uma promoção em função de sua dedicação e determinação naquela causa. O projeto agora estava em evidência, a chefia considerava um grande ponto marcado, tendo chamado a atenção até mesmo da matriz da empresa, nos Estados Unidos. Aquela viagem naquele ônibus, contemplando aquela janela era uma das decorrências do projeto para Miguel. Tinha ido até  a capital vizinha para mais uma reunião, embora seu estado de espírito nessa volta nada tivesse a ver com as boas perspectivas que eram vislumbradas para o projeto nesse próximo ano. Nesse momento, Miguel só conseguia pensar no ano que passou, e não no que estava por vir.

Carlinha. Aquela criatura alegre e agitada, aquele ser angelical de um metro e meio de altura, que usava roupas deliciosamente femininas e ao mesmo tempo encantadoramente provocantes, sem jamais sequer esbarrar em qualquer vulgaridade. A pessoa que Miguel esperava para sempre chamar de "sua menina", mesmo quando estivessem ambos velhinhos, pra lá dos 80 anos. Carlinha, aquela que numa dessas saídas, ele tinha conhecido através de um amigo em comum, saída também de um relacionamento fracassado. Carlinha, aquela que gostava das mesmas bandas que ele. Carlinha, aquela que tinha gostado de tantos filmes, livros e até mesmo desenhos animados em comum com ele, que em certos momentos parecia ter convivido com ele na mesma vizinhança da infância e adolescência, embora tivessem nascido e sido criados em estados e até regiões diferentes do país. Carlinha, aquela a quem ele de vontade própria escolhera para entregar seu coração remendado. Carlinha, aquela por quem ele derramava aquelas lágrimas amargas e lentas, naquele exato momento.

O relacionamento começou mesmo num momento em que Miguel não planejara, na verdade até esperava que passasse um bom tempo antes de tentar novamente. O trabalho ia de vento em popa, a alegria tinha retornado a sua vida, a diversão, os amigos presentes, as festas ocasionais, os pequenos prazeres da vida. Vivia uma fase feliz, apesar de seu coração jamais deixá-lo esquecer que tinha sido feito para estar ocupado. Miguel não conseguia enxergar uma felicidade completa estando sozinho. Sempre imaginou que um dia encontraria a mulher perfeita, aquela com quem formaria uma indissociável união. Aquela com quem poderia dar início a todo um novo universo. Por mais que o relacionamento com Mariana o tivesse machucado, ainda trazia essa ambição dentro de si. Ao conhecer Carlinha não levantou essa possibilidade de cara, mas surpreendeu-se com a promessa que essa nova pessoa passara a representar tão rápido para ele.

E agora no ônibus da estrada e do vidro refletindo suas lágrimas, no ônibus da estrada que passa rápida lá fora e das lágrimas que escorrem lentas cá dentro, Miguel tenta não pensar, mas pensa. Pensa em como se apaixonou rápido pelo jeito como Carlinha ri, pelo cuidado com que Carlinha segura o sanduíche na hora de comer, pelo jeito como ela joga o cabelo quando está entusiasmada contando alguma novidade. Ao mesmo tempo, passam como fantasmas diante de seus olhos, cenas como a forma com que Carlinha desviava seu olhar do dele no dia da conversa final. Ou a repentina frieza naquele olhar do qual ele se acostumara a receber tanto calor... (Ou não? - Se perguntava)... Chegava agora, no meio daquele poço escuro de emoções ruins recicladas, a duvidar se tanto calor tinha vindo dela ou se ele mesmo havia imaginado, idealizado e interiorizado tudo. Era possível. Era mais plausível até.

Era uma boa forma de explicar o acontecimento fatídico de semanas atrás. Miguel voltava de mais uma das frequentes viagens por conta do projeto, com  um ursinho de pelúcia que havia comprado para Carlinha. Voltava no sábado à noite, e pretendia combinar para se verem no domingo, mas Carlinha avisara que pretendia ficar o domingo com a mãe, que reclamava não a ver há um bom tempo. Iria encontrá-la no domingo bem cedo, passaria todo o dia com ela. Pretendiam ficar entre passeios, shopping, talvez um cinema, e a casa da mãe dela. Daí veio a idéia de Miguel, que levaria ao fim de tudo. Não sairia mesmo no sábado à noite, estaria descansado da viagem o suficiente para no domingo ainda pela manhã passar no prédio de Carlinha e deixar o presente na portaria, para ser entregue de surpresa quando ela chegasse.

No domingo, acabou saindo mais tarde que pretendia, o que fez com que chegasse à vizinhança de Carlinha pouco antes da hora do almoço. Parou com o carro, o enorme urso acomodado no banco de trás, como uma criança superdesenvolvida, bem perto da portaria do prédio dela. Após o sinal, ficava a rua que costumava entrar para estacionar melhor o carro, sob a sombra das árvores da rua atrás do condomínio. Por um momento, parecia que seu coração tinha sido esmagado por um punho gigante... parou. Dali a uma fração de segundo, começou a bater descontroladamente rápido. Viu um carro na portaria do prédio, um esportivo americano que já tinha visto em revistas, mas nem sabia que era vendido no Brasil. Dentro do carro, um cara e ao lado dele, Carlinha. Era Carlinha, sem dúvida. Cabelo, rosto, tudo conferia. Os dois sorriam. Carlinha ria de algo que o outro dissera, um riso de que Miguel não lembrava ter visto, pelo menos não há bastante tempo. Devido ao movimento fraco do trânsito, ninguém buzinou, as pessoas apenas desviavam do carro de Miguel, ainda parado no sinal. Os dois fizeram menção de sair do carro, e Miguel percebeu que alguns movimentos de Carlinha denotavam inconfundível intimidade. Seu coração batia em ritmo louco, descompassado, descontrolado, e seus braços e pernas estavam moles, como se não houvesse ossos. Alguma parte mais distante dentro do seu cérebro enviou um comando mudo a uma das mãos e ele acionou discretamente o pisca-alerta, de maneira que nem sua cabeça nem seus olhos se moveram do que acontecia na frente do prédio. Carlinha tinha saído do carro, vestia uma saída de praia, biquini por baixo. O sujeito, um cara alto e forte, com um cordão de metal indecentemente grosso no pescoço, vestindo bermuda de tactel e uma camiseta sem mangas, pareceu a Miguel um estereótipo ambulante, uma ofensa à sua intelectualidade. Um tipo que ele desprezaria, mesmo que jamais estivesse vendo naquele contexto. Aquelas pernas finas e aqueles bíceps com tatuagens estilo japonês... Aqueles óculos escuros tão previsíveis, aquele jeito arrogante. E aquele cordão! Aquele cordão parecendo uma coleira de cachorro, de um dourado horrível!

À medida que a cena se desenrolava, Miguel ia recuperando um pouco o movimento das pernas e dos braços, mas não que isso fizesse alguma diferença. Continuava atônito, capaz somente de assistir. Os dois se dirigiram à parte de trás do carro, e Carlinha parecia mais agitada e saltitante do que Miguel se lembrava. Alegre até. O cara abriu o porta-malas e tirou de lá uma sacola de conteúdo indefinido, e ao fechar foi simplesmente agarrado por Carlinha, que tinha se atirado nos braços dele. Como se nada mais importasse, como se não estivesse na rua, em frente ao prédio onde morava, à vista de algum vizinho, porteiros, gente que a conhecia. Começava a se formar um bolo amargo de ódio no estômago de Miguel, e ele soube instantaneamente que o motivo do bolo era tão e somente a felicidade (ou pelo menos alegria) que ela demonstrava naquela cena. Dirigiram-se à entrada do prédio, abraçados, quando começaram a subir as escadas que davam acesso à portaria, Miguel não pode deixar de perceber acintosa palmada que o cara deu na bunda de Carlinha, e a infinitamente mais acintosa reação dela: um sorriso.

Miguel não se lembrava muito bem o que aconteceu depois disso, mas de alguma forma conseguiu sair com o carro, e fazer o caminho que sempre fazia quando ia ao apartamento de Carlinha: contornou e acessou a rua bem pouco movimentada atrás do prédio dela, parou o carro e chorou como nunca tinha chorado antes na vida. Pode ter ficado bem umas cinco ou seis horas dentro daquele carro, chorando e boiando em sua piscina de autopiedade, pois já estava escurecendo quando finalmente teve forças para voltar pra casa.

Desde este dia, pouca coisa pode ser dita. As lágrimas no reflexo da janela do ônibus seriam mais eloquentes que o coração ou as palavras de Miguel naquele momento. Eram o resumo dos dias após aquela experiência. Obviamente, o pessoal do trabalho percebeu a diferença, perguntaram mas ele foi capaz de dar uma desculpa, inventara um problema de saúde convincente o bastante para que não o incomodassem mais por um tempo. A conversa que teve com Carlinha uns dias depois também poderia contar muito a respeito de como se sentia, mesmo que fosse apenas assistida por um vídeo, sem som algum. Engraçado, pensava ele, é que só naquela altura percebera que mesmo sem que ela soubesse que ele tinha visto a cena, ela não teria ligado para ele por dias. Era sempre ele quem ligava. Era sempre ele que procurava. Claro, ela respondia, ela interagia. Mas as iniciativas, as corridas atrás, eram dele. E quando ele não o fez, ela nem teve a capacidade de estranhar. Nem isso.

O encontro foi melancólico. Carlinha tinha aquele olhar indiferente, dolorosamente distante. Miguel procurou não perder a calma, disse o que viu, disse que estava magoado, disse que tinha imaginado um futuro à frente dos dois. Carlinha ficou calada na maioria do tempo. Não chorou, não fez menção de pedir perdão, não teve nenhuma atitude, exceto quando Miguel insinuou tocar no nome do rapaz que a acompanhava naquela data. Ela apenas interrompeu Miguel e pediu que ele não falasse de alguém que ele não sabia quem era, e assim, encerrava-se a conversa. Carlinha parecia um pouco triste, mas na verdade a expressão que ostentava misturava incômodo, um pouco de constrangimento, e uma vontade louca de não estar ali, de não estar tendo essa conversa. Recusou-se a dar qualquer detalhe, não disse o nome do rapaz, nem a natureza do relacionamento que tinha com ele, qualquer que fosse. Apenas olhou para Miguel uma vez, no olhar uma sombra distante (bem distante) do que já tinha sido um dia. No momento de dizer-lhe adeus. Miguel parecia a ponto de levantar, ajoelhar, correr, implorar, pedir que ficasse ou somente implodir em prantos, mas nada fez... Apenas ficou atônito, sentado no café da livraria onde tinham tido seu primeiro encontro como namorados... e onde tomava lugar o talvez derradeiro capítulo daquela história de um amor que foi escrita, vivida e contada por apenas um dos lados.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A civilização da bolha

©vivaboo.com

Às vezes o mundo nos encerra numa bolha, e ficamos tão centrados em nossos assuntos que esquecemos de olhar pra fora. Vemos o mundo através de nossas lentes, através das frágeis paredes de nossas bolhas, e lutamos muito para impedir que estas bolhas estourem. E esse processo de reflexão e procura em manter nossa cápsula de vida intacta e sem riscos nos impede de ver muitas coisas que acontecem lá fora. Muitas vezes também ficamos ofegantes dentro da bolha, embaçando sua transparência original e criando distorções na forma de enxergarmos o mundo. Muitas vezes é comum vermos as pessoas fazendo coisas que consideramos erradas, mas que nós mesmos também fazemos. Muitas vezes, a bolha se embaça, e vemos alguém fazendo algo errado, e criticamos. Só que em alguns casos, devido à visibilidade alterada dentro da bolha, estamos vendo nosso próprio reflexo fazendo algo errado, e pensamos ser outra pessoa.

Muitas vezes, preferimos por no mundo a culpa, ou a responsabilidade por coisas que são reflexo direto da maneira como somos, como agimos, como interagimos. Começo a acreditar que o mundo fora da bolha, cada vez mais é um reflexo dos nossos medos, dos nossos defeitos, das nossas idiossincrasias, das nossas imperfeições, nossos preconceitos e das incapacidades que não aceitamos ter. Vamos seguindo imperfeitamente, e cada vez mais, colocando defeitos no mundo. Projetando coisas ruins, acumulando apegos a coisas desnecessárias, vivendo e revivendo sofrimentos, remoendo mágoas, regurgitando de nos alimentando novamente de traumas do passado.

Quando as coisas se tornam mais claras, ao invés de procurar entender o que se encontra dentro de nossas próprias bolhas, perpetuamos nossa conduta errônea ao continuar repetindo os mesmos padrões de crítica, de negação, de não aceitação e de desprezo ao que está lá fora, mas na maioria das vezes, acontece exatamente da mesma maneira que aqui dentro também. Perdemos as chances de encontrar aprendizado, crescimento, perdão, equilíbrio e autoconhecimento. Agora, cada vez mais, só nos resta flutuar em nossas bolhas de individualidade, torcendo para que não estourem com tanto peso que carregamos dentro delas.

A morena da estrada

*conto baseado em uma famosa lenda urbana.
© picture by Sebastian O'Malley
Wilson era caminhoneiro. Numa madrugada fria de inverno na serra, após a neblina ter se espalhando pelas encostas dos morros, uma chuva fina caía e obrigava o motorista a dirigir no limite mínimo de velocidade. Em certo momento da viagem, passando por um trecho deserto da BR-040, altura de Itaipava, ele pensou ter visto um corpo de mulher deitado na beira da estrada... Era uma noite daquelas em que mesmo o tráfego de carga estava infrequente... e o trecho de estrada naquele momento, deserto. Em alguns segundos, Wilson —que sempre se orgulhara de seu ceticismo e destemor de tudo quanto era sobrenatural— decidiu-se por encostar o caminhão e verificar a cena, por puro espírito de aventura. Parou no acostamento, pouco além do ponto onde tinha visto a mulher. Aproximou-se, e constatou que era o cadáver recente de uma bela mulher... Cabelos escuros e compridos, pele clara e jovem, não mais que uns 26 anos. Jazia de olhos abertos, baços, numa expressão estranha. Na altura do peito, três pequenos orifícios de tiro. Nas costas, os buracos consideravelmente maiores da saída dos projéteis. O sangue, lavado pela chuva fina, se espalhava discretamente no escuro do asfalto. Verificou que a mulher usava um anel na mão esquerda, no dedo onde se usam as alianças. Ao verificar a peça, constatou que parecia ser de ouro, e a pedra, de provável bom valor. Com sorte, poderia conseguir um bom dinheiro pelo anel. Fez alguma força para sacar o anel do dedo da morta, mas não saía. Não entendia porque, mas aquilo o estava deixando nervoso.

Nunca fora supersticioso. Pelo contrário, sempre fora um homem de extremo sangue-frio... Bem jovem, antes de ser caminhoneiro, trabalhara por um tempo como auxiliar na funerária da pequena cidade onde nasceu, onde aprendeu a ter naturalidade na presença dos mortos. Mas estava definitivamente nervoso naquele momento. Se fosse perguntado depois, diria que não se lembrava de como passou a ideia pela sua cabeça. Antes que percebesse, já estava de posse do canivete afiado, que carregava sempre consigo. Em segundos localizou o ponto certo de articulação do dedo da mulher, e cortou o dedo fora. Após decepado o dedo, o anel soltou-se com facilidade. Wilson experimentou uma estranha sensação de alívio ao se afastar do corpo, apertando o anel entre os dedos. Percebeu com certa distração que ainda tinha o dedo da moça na mão. Com um mórbido arrepio, que fez questão de se convencer que era de frio, jogou o dedo bem longe no mato da beira da estrada. Subiu na boleia e partiu.

Dez anos se passaram desde essa noite fria. Parado num canto do bar e já com umas cervejas na cabeça, ele percebeu a mulher que o observava e ficou um tempo no jogo de olhar pra lá, olhar pra cá, e se agradou da moça. Não parecia mulher daquelas bandas. Wilson terminou de beber sua cerveja e dirigiu-se à moça com quem tinha trocado olhares, conversaram por alguns momentos, ele se agradou da voz dela, achou raro o som, parecia a voz de uma locutora de telejornal, de quem não lembrava o nome. Fazia um frio agradável, era tempo de exposição agropecuária, a cidade movimentada, muita mulher bonita. Em pouco tempo naquela conversa rolando fácil, decidiram sair. Ofereceu-lhe carona, ela aceitou. Foram para o caminhão e já no caminho, Wilson antecipava mentalmente a satisfação de tomar um banho no motel na companhia daquela morena bonita. Puxou o maço de cigarros distraidamente, enquanto saía com o caminhão. Ofereceu-lhe um, Sônia (ela disse que se chamava assim) aceitou. Na hora de acender, Wilson reparou distraído na mão esquerda da moça. Faltava um dedo. Perguntou-lhe distraidamente como o havia perdido.
— Não se lembra? — Perguntou Sônia. — Eu sou a moça da estrada, aquela que você cortou o dedo pra levar o anel...

Na mesma noite, encontraram o corpo de Wilson nas ferragens da cabine do caminhão. Algumas testemunhas no bar onde estivera reconheceram Wilson pelas fotos, mas ninguém lembrava de haver alguém com ele.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Pelo direito de não ser esquerda... e nem direita!


Ou em outras palavras, fuck the maniqueism!
Pouco tempo atrás, em uma das redes sociais em que participo, tive uma particular discussão política com um de meus contatos. Trata-se de uma figura camarada, porém dada a radicalismos políticos. Problema, pois dentre as poucas coisas às quais me posiciono "radicalmente" contra, estão os radicalismos políticos. Se Buda já sabia que o caminho do meio é melhor (apesar de ser infinitamente o mais difícil), não acho que nas convicções políticas a coisa devesse ser lá muito diferente. O referido colega é uma figura obsessiva, do tipo que escolheu um lado e a partir de sua escolha, passou a achar inconcebível que seu lado esteja errado. É do tipo que refuta veementemente qualquer tentativa de fazê-lo ver que o mundo é muito mais que azul ou vermelho, e que o vermelho pode errar, não importa se menos, tanto ou mais que o azul. A criatura simplesmente escolhe não aceitar erro algum partindo do lado que escolheu. Em suma, entrei em embate com um pentelho. Um verdadeiro pentelho.

Trata-se de um daqueles tipos, esquerdista clássico, egresso de uma cultura pós-hippie setentista, fruto de um tempo que não amadureceu com o passar das primaveras. Com apenas um detalhe de modernização, se chama de "progressista", já que hoje em dia parece demodê chamar alguém de esquerdista ou direitista... Os gênios da nossa intelectualidade de esquerda então danaram a chamar todo mundo de progressista ou conservador (poxa, vida! Que grande diferença não? Tudo vai mudar depois dessa, não é?). Mas enfim... o cara é do tipo que anacronicamente, ainda vive a primavera socialista, que ainda enxerga flores imaginárias em fotos de gulags soviéticos e que idolatra Mao Tsé, Lênin e Marx com o mesmo fervor religioso com que as velhinhas da paróquia do Rosário rezam seus terços a Nossa Senhora da Cabeça ou a São Charbel ou às 13 Almas. É do tipo que acredita que Lula não sabia. É do tipo que acha que o mensalão não existiu, foi invenção da oposição. É do tipo que acredita que Zé Dirceu é um cara e tanto, e se tivesse uma filha deixaria casar com ele, se fosse o caso.

Aí, pouco tempo depois disso, vem essa semana de Rio+20, onde vejo tanto erro, tanto equívoco em forma de pensamento humano, e me desanimo um pouco. De um lado vejo essas jovens esquerdas, esse povinho recrutado nas universidades públicas, que repete os mesmos bordões e frases de efeito de 30, 40, 50 anos atrás. Que se engaja em manifestações desprovidas de valor prático, sem direcionamento, movidas apenas por uma ideologia que cada dia que passa se torna uma ideologia pela ideologia. E vejo os embates entre esse tipo de direcionamento e o reclamismo das "viúvas da ditadura", uma parcela ignorante que acha que o modelo patriarcalista, paternalista, hipócrita e competente em se manter poderoso da parcela "tradição-família-e-propriedade" de nossa sociedade é melhor. Os que pregam um retorno à ditadura militar, os que apóiam uma continuação do capitalismo selvagem. Vejo que falta opções, vejo que tudo que há são embates ridículos entre os 2 lados.

E me lembro que pouquíssimas são as pessoas que conseguem escapar do padrão. Poquíssimas são as pessoas que conseguem erguer o pescoço acima da manada. Pouquíssimas são as pessoas que conseguem quebrar o gesso desse maniqueísmo que colou na humanidade pelos séculos XIX e XX e que continuamos arrastando século XXI afora. Mesmo levando em conta que esse gesso do "ou preto ou branco", do "ou comunista ou capitalista", "ou machista ou feminista", "ou sádico ou masoquista" já está sujo, fedorento e cada vez mais pesado e cansativo de se arrastar.

Vejo o mundo mudando pra pior, a quantidade de gente aumentando como uma infecção, os recursos naturais sendo consumidos a uma taxa tal que precisaríamos de um planeta e meio para dar conta da demanda. Vejo acontecer conferências como a Rio+20, que no próprio nome traz a impressão do fracasso, juntamente com a sensação de que 20 anos depois da Eco92 nada de efetivo se realizou. Temo pelo estabelecimento de um padrão que definirá que a cada 20 anos nos reencontraremos para assistir jovens idiotas abraçando uma utopia esquerdista ultrapassada, para assistir índios fazendo figuração sem saber de onde vieram e tampouco para onde vão. Marcamos para daqui a mais 20 anos outro encontro, para vermos os mesmos revoltados de mente curta praguejando contra os ecologistas, contra os fumadores de maconha e defensores do aborto, enquanto sonham com a volta de uma ditadura que pudesse "botar ordem nessa bagunça". Serão necessárias quantas conferências? Rio+40? +60? +80? O planeta nos aturará até lá? Pode ser que não, provavelmente dará um jeito de se livrar de nós, como nós próprios fazemos quando temos uma dor de cabeça que chega ao ponto de incomodar. Não acho sábio encher o saco do planeta. Nossa mãe terra pode se automedicar e aí ficarão só as baratas, que espertas que são, não estão nem aí para doutrinas políticas.

Se fica cada vez mais claro que nenhum sistema atual tem a solução, porque insistimos tanto em nos agarrarmos a sistemas falidos para tentarmos resolver os problemas que se acumulam? Porque vemos tantos rebeldes, tantos revolucionários, tantos iconoclastas, tantos "do contra", que adoram a idéia de derrubar tudo que aí está, mas que não tem a menor idéia de colocar nada (pelo menos nada que preste) no lugar do que se pretendeu derrubar?

Penso que à medida que a população cresce, só aumenta em quantidade. A quantidade crescente impede que se invista na qualidade do ser humano. São bilhões e bilhões de adolescentes tirando fotos nos espelhos do banheiro, fazendo bico de pato. Bilhões e bilhões de hábeis discutidores de futebol... Bilhões e bilhões de fãs alucinados de Justins Biebers e Ladys Gaga...  Sinceramente, que vão todos à merda, temos que fazer de outra forma. Não sei dizer exatamente qual, mas tenho a mais absoluta certeza, de que consumindo iPads, sonhando com Ferraris e desejando sermos loiras, não é. A forma será outra. E começará fazendo uma coisa que tem-se feito pouquíssimo: pensando diferente, olhando por outros ângulos, e quebrando a  tendência natural a um maniqueísmo extremamente limitador, que domina nossa condição humana há bastante tempo. Me recuso a ter que escolher entre Henry Ford e Pol Pot. Temos que ter outras opções. O foco tem que mudar. A política tem que mudar. A economia tem que mudar. O consumo tem que mudar. A nossa teimosia tem que mudar.

Ou isso ou a paciência do planeta acaba (a minha, muito antes), e aí nos fudemos todos. E nós aqui no Brasil, mais bonito ainda, porque estaremos fodidos de verde e amarelo.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Rio, cidade olímpica. Ou não.

Rio, cidade olímpica. Ou não.


A alma do Rio de Janeiro mora, essencialmente no seu centro. Esqueçam a Zona Sul, deixem a Zona Norte pra lá. Assim como as pessoas, as cidades muitas vezes evoluem, crescem, mudam de categoria, enriquecem. Mas se quisermos entender seu jeito de ser, compreender muitos dos comos e porquês, e reconhecer as origens de suas idiossincrasias, é necessário olhar suas origens. Saber de onde vieram, e como foram criadas. Assim com as pessoas, assim com o Rio de Janeiro. Eu conheci o Rio de Janeiro entrando por sua porta dos fundos. Entrei por um lado diferente do approach turístico, dos que desembarcam no Aeroporto do Galeão (aliás, há tempos mudou o nome, mas prefiro o antigo mesmo) e seguem direto para uma Zona Sul mítica propagandeada por novelas da Globo. Conheci a cidade chegando pela Rodovia Washington Luís, vindo da serra, passando por Duque de Caxias. Conheci a Zona da Leopoldina, com sua decadência, invadida por uma favelização alegre, contrastando com uma eterna cara de desânimo dos moradores antigos, do tempo das crônicas de Nelson Rodrigues.


Cheguei ao centro da cidade via Vigário Geral, Cordovil, Brás de Pina, Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Manguinhos, Benfica, São Cristóvão, Santo Cristo... Pelo caminho, tropecei em bandidos em formação, mendigos, sambistas esquecidos, periguetes com cabelos mal pintados, e outros personagens de toda sorte, afogando suas mágoas com cerveja barata em meio a muito abandono e sujeira. O Centro, de certa forma, acaba virando um desembocadouro de todos esses tipos humanos, uma geléia cinzenta, com belos casarões antigos que nos causam pena de ver abandonados. Volta e meia, desaba um. Nesse mesmo Centro, se aglutinam e se reproduzem ainda nos dias de hoje o mesmo desleixo que os cariocas que receberam a família real de Portugal em 1808 dispensavam à sua cidade. Lixo no chão, lixo nos bueiros e milhões de cariocas tocando suas vidas pra lá e pra cá. Desorganização, preguiça e uma malandragem burra, do tipo que não se reinventou, que não evoluiu, que não se transformou em esperteza, nem em inteligência.Os bacanas da Zona Sul vem trabalhar aqui, pela Presidente Vargas ou pela Rio Branco. Os bacanas do Estácio e da Providência também vem, roubam ali em frente à central. Já os bacanas da Zona Sul que roubam, normalmente dão expediente ou ali ao lado do Paço Imperial ou naquele prédio ao lado da sede dos Correios, na altura do 2.500 da Presidente Vargas. Tá pensando o quê, o Centro é lugar de trabalho.


E eis que um dia alguns bacanas resolveram que para melhorar o Rio de Janeiro, não precisavam de fato melhorá-lo tanto assim. Bastava vendê-lo, mas vendê-lo bem mesmo. Aí os ricaços que engolissem a isca, iriam fazer todo o trabalho. Iriam melhorar a cidade por conta própria. Mas a campanha de promoção teria que ser boa, muito boa. Envolveria o mundo inteiro, quem sabe até conseguir-se-ia trazer uma olimpíada para ser feita na cidade? Mesmo com bueiros explodindo, mesmo com um trânsito patético, mesmo com uma criminalidade próxima à de países em guerra. A propaganda seria a alma do negócio, e os negócios seriam de alto nível. Envolveriam empreiteiras, envolveriam viagens internacionais. Precisaria muita disponibilidade pra viajar, e muita cara-de-pau, muita lábia de vendedor. Por sorte, a paisagem ajuda. Aos investidores gringos mais durões, caipirinhas em profusão, para amolecer o espírito. Assim, vendemos a cidade, transformando-a em uma das mais caras e mais badaladas do mundo. E isso tudo sem precisar gastar muito mais do que sempre gastamos com transporte, limpeza pública e todo o resto, que sempre fizemos na base do cala-boca.


Mas é aquele negócio, fácil de explicar, embora não seja tão fácil de entender... o carioca é tão burro que aceita de bom grado qualquer governante cambeta que aqui chegue, seja um Dom João, seja um Garotinho. Aceita ser atingido por balas perdidas, enquanto aplaude embevecidamente o pôr-do-sol em Ipanema, flutuando na marola dos baseados. Aceita voar não por intermédio de uma companhia aérea, mas por conta de bueiros que explodem... e aterrissar em um monte de lixo, ou quiçá em um aglomerado de viciados em crack dormindo num canteiro do outrora tão belo Campo de Santana.

Mas no fim das contas, o carioca mesmo, não está nem aí pra isso. Sabe como é, né? Carioca é malandro... Então tá. Vai tomando, malandro.

domingo, 13 de maio de 2012

A manada virtual


             Não, eu não acho alguém dizer que “morre de ou por amor” lindo via rede social. Até porque na grande maioria das vezes a mesma pessoa que diz que morre de amor, dali a 2 meses já está achando o namoro “meio chato”. Ou reclamando do ciúme extremo do outro lado, ou dizendo que o outro não quer se compromenter... E não, eu não vou tirar a minha foto no perfil da rede social e colocar uma de nós dois sorridentes. Não vou deixar de ser eu pra me tornar “eu mais você”, porque no apagar das luzes, na hora H, você não é eu, e eu não sou você. O que me torna feliz numa relação é estar ao lado de alguém que é uma pessoa completa, e não uma metade cambeta que dá a entender que precisa de uma muleta pra viver. Tampouco vou colocar mensagens e indiretas para as pessoas que supostamente sentem inveja da minha felicidade. Se eu sou feliz, não há espaço para me importar com gente invejosa. Só se importa realmente (e tanto assim) com a inveja alheia, quem deseja parecer mais feliz do que de fato é. Também não vou passar o dia mandando mensagens edificantes de pensadores, intelectuais e artistas de renome, enquanto minha própria vida é uma prova de que eu não pratico nada daquilo que as tais mensagens aconselham.

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             Não, eu não vou achar que salvar os animais é colocar online uma foto de um cão machucado. Colocar uma foto online é fácil, difícil é ter cabeça no lugar e saber que não dá pra salvar todos os bichos do mundo. Eu não vou achar linda aquela roupinha que faz o seu cachorro parecer ridículo. Tenho certeza que ele concordaria comigo que tratá-lo “como se fosse gente” é de uma certa forma, subestimá-lo em sua condição. Acredito profundamente que na sua maioria, os bichos são muito mais dignos que o ser humano, e quem tenta humanizá-los demais acaba por ofendê-los. Não, não vou bater palmas para as iniciativas de “acumuladores de animais”...  Pessoas que por alguma deficiência emocional, deixam de resolver seus problemas vestindo um manto de salvadores dos pobres bichinhos, muitas vezes condenando-os a condições aquém das ideais, cegos por um “amor” que é apenas uma maneira de ocultar uma doença... E que acaba deixando os pobres animais doentes também.
             Não, eu não vou compartilhar aquela mensagem de ajuda a uma criança deformada, porque a criança deformada da imagem é a mesma de um e-mail que recebi há uns 5 anos atrás. A não ser que essa doença congele o crescimento, a essa altura a criança já morreu ou foi curada. Tampouco vou compartilhar aquela mensagem da menininha desaparecida segurando uma flor. Se contar da primeira vez que recebi essa foto, a menina já deve estar com uns 15 anos hoje em dia. Mas na foto, continua com os mesmos 2 ou 3 anos de idade. E não, eu não vou fazer apologia da minha religião pra quem quer que seja. Se eu desejo seguir minha crença e não imponho a ninguém que o faça, se torna desagradável que acenem insistentemente os pequenos fanatismos do cotidiano na minha frente.]


             Ainda há muito humor, arte, beleza e poesia nas coisas simples do mundo... Mas a sutileza está morrendo, soterrada na mediocridade de uma sociedade que só pensa em termos de agora ou nunca, de vida ou morte, de amor ou ódio. As mentes se estreitam, se apequenam, as artérias ficam cada vez mais estreitas, entupidas pelo açúcar de um romantismo piegas. Há poucas pessoas capazes de olhar por cima desse muro, capazes de enxergar que há um mundo fora da caverna. E aos que já enxergaram, há todo o descontentamento em ver o quanto os que continuam lá dentro brincam com as sombras, de costas para a realidade. Compartilhe coisas boas, mas antes, descubra por si ou que elas são. Tente pôr a cabeça acima e olhar em volta, pois seguir a manada é muito fácil.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Tormentas de sentimentos

© TRA751T

Certas vezes procuramos palavras para expressar sentimentos que não tem nome. Nem sempre vingamos sucesso, pois a maré das paixões humanas é poderosa. Ainda assim, admiro mais aqueles que à guisa de marujos e pescadores, colocam seus pequenos barcos à mercê do mar, ainda que revolto, repleto de tempestades.

 Eu também possuo um barquinho. Eu também me ponho a enfrentar as ondas. Entre boas pescas aqui e amargos naufrágios acolá, sigo vivendo. Carrego em meu peito a honrada felicidade de impor ao mar minha vontade, sempre que é possível. Vivendo destarte, aprendi que o mar revolto dos sentimentos exige respeito, porém só reserva alguma clemência àqueles que respeitam a si mesmos.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Mini-ditaduras




Dia desses, li uma matéria interessante a respeito de um assunto polêmico ao qual tenho prestado bastante atenção nos últimos tempos. Falava sobre um jovem casal, profissionais de boa formação, que tinham um relacionamento estável, feliz, e que não desejavam ter filhos. Ao ler a matéria, em muitos momentos me identifiquei com alguns argumentos, já que como mencionei, ultimamente tenho pensado com mais frequência no assunto “ter ou não ter, eis a questão”. Me vi bastante em alguns pontos, em outros nem tanto, mas procurei enxergar os diferentes lados da questão. Ao terminar a leitura, o que me impressionou mais profundamente não foi a matéria em si, mas o teor de alguns dos comentários feitos por pessoas não tanto do bloco dos que apoiavam a decisão de não ter, mas os do bloco dos que discordavam do casal. Percebi isso como sinal de um claro desequilíbrio em nossa sociedade, uma incômoda sensação de que vivemos certos aspectos dela em uma liberdade extremamente frágil. Uma mini-ditadura.

À medida que os meus 40 anos vão se aproximando, eu me ponho a pensar a respeito do gerar ou não filhos. À medida que a nossa vida avança, a gente vai percebendo que nem sempre -e nem pra todo mundo- aquele roteirinho pronto de vida perfeitinha funciona. No meu caso, por exemplo, tive um relacionamento sério bem jovem, e ao que tudo parecia, o roteiro ia ser o padrão. Namoro começado quando tinha meus 18, fomos morar juntos quando eu tinha 25. Só que o roteiro mudou. O casamento durou 5 anos apenas, e nos separamos antes de virem os filhos. Aos 30, por uma infinidade de razões (que não cabem neste post, seriam assunto para outro), foi com boa dose de alívio que enfrentamos uma separação que teria sido infinitamente mais estressante e menos civilizada se tivesse criança(s) na questão. Depois disso, vieram anos de solteirice que passaram rápido. Quase nenhum dos relacionamentos desse período conseguiu me levar a considerar a hipótese de casar ou juntar novamente, e nenhum me levou a considerar ter filhos. Aos 37, quase 38, mesmo estando em um relacionamento melhor que os anteriores, me reconheci como uma pessoa diferente de quando estive casado. Somaram-se as novas vivências, experiências e mudanças de modos de pensar a um certo anticonformismo que eu já tinha mesmo, no original. O tempo passou e eu comecei a ter mais capacidade de questionar certos padrões e certas posturas que a sociedade já espera da gente no automático. Não tinha sido a própria vida que em certo momento se recusou a me dar um roteiro padrão para seguir? Pois bem, então. Coincidência ou não, ter conhecido e estar namorando uma mulher tão “ponto fora da curva” quanto eu me fez repensar várias cobranças que a sociedade faz às pessoas. Como essa obrigação de formar famílias, ter filhos, procriar.

Já ouvi pessoas dizendo coisas como “mas quem vai cuidar de você quando ficar velho?” “Ficar velho sozinho é muito ruim” “Filhos são a alegria da nossa vida”... Tudo clichê, tudo pensamento pronto, tudo coisas que podem ser assim OU NÃO. Existe muito velho que tem filhos, e ainda assim se encontra abandonado. Existe muito velho que não tem filhos, mas que nem por isso é alguém solitário ou abandonado. Existe muitos pais e mães cujos filhos trouxeram muito pouca coisa além de sofrimento e desgosto em suas vidas. Já conheci, testemunhei, convivi, com muitas pessoas que não deveriam ter tido filhos. Acredito firmemente que nem todas as pessoas foram feitas pra serem pais. Aliás, a nossa sociedade ainda peca no entendimento de que procriar é muito diferente de formar um filho, ou de criá-lo minimamente bem. Sem contar com a glamourização da gestação, do nascimento, com objetivos puramente mercadológicos. Feiras de “gestantes-e-bebê” e lojas de artigos para bebês são uma ótima forma de observar as pessoas agindo no piloto automático imposto pela sociedade. Mas se você tiver ouvidos atentos, e uma cabeça capaz de entender algo mais complexo que futebol ou novela das oito, irá perceber que nem tudo são rosas. Às vezes você percebe uma mãe estressada pelo milhão de responsabilidades descontando irracionalmente sua frustração nos próprios filhos. Às vezes você testemunha o pai que nada mais foi que só um depositador de esperma num óvulo, faltando com tudo que se espera dele na formação de uma criança. Às vezes você conhece alguém que tem uma miséria emocional tão profunda, que duvida que um filho criado por aquela pessoa seja capaz de sobreviver nesse mundo estranho que temos aí hoje em dia. E no fim, chega à conclusão de que o simples fato de ser pai ou mãe não transforma uma pessoa ruim automaticamente numa pessoa boa. Qualquer canalha pode ter filho.

Mas quando volto ao caso da matéria, o que me vem à mente com mais força não é a questão da escolha de cada pessoa. O estranho é notar nos comentários uma grande quantidade de pessoas condenando a decisão do casal, como se sua verdade de pais fosse automaticamente mais valiosa que a dos não-pais. Fiquei pensando como essas mesmas pessoas reagiriam se fossem condenadas em suas decisões de terem filhos. Se a cada problema que enfrentassem na criação ou educação das crianças, lhes fossem jogadas na cara suas falhas. Tudo isso, se mistura na minha cabeça, conjugando um caldeirão que começa com a lembrança de vários episódios de “Supernanny” onde filhos batem na cara dos pais, crianças incontroláveis, meninas de 12 anos sendo mães nas favelas, inocentes abandonados na rua até não serem mais inocentes, e uma sociedade que discute com mais vontade o aborto do que a inteligência de se refletir sobre se um casal deve ter filhos ou não. Se vivemos numa sociedade de pequenas ditaduras, certamente esta é uma delas.

A propósito, a matéria que mencionei está neste link.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Abolição



















Hoje aboli alguns segredos,
Aboli também alguns medos e delírios...
Decretei, com a pena exata e cruel do destino
A abertura de um processo de libertação
da minha escravatura.

Exigi do meu futuro um abrandamento
Que não seja um fim, para o sofrimento
Ao menos que eu veja, que eu sinta
Um caminho a seguir, sem mentira, sem fintas
Uma estrada clara,ou uma forte viga
Não quero mais empurrar com a barriga.

Hoje aboli toda uma história de procuras cegas
Todo um passado de noites em trevas
Em negação de prazeres e fé.
Me permiti o direito de sonhar com futuros
De sair de subterrâneos, porões escuros
E na luz do dia, postar-me em pé.

Na ressaca da festa da libertação,
Me tornei consciente da minha verdade
Sou um livro aberto, minha própria ficção
A navegar o revolto mar da liberdade.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Dias de luta


















Ao meu lado, minhas botas descansam
Meus pés a sentir o frio do chão
Pela janela, vejo os anos que avançam
Em cada vez mais rápida sucessão.

A semana passou, eu não vi
Chateado, inadequado, dormente
Já a vida passando, eu senti
Pra culpar, só o maldito inconsciente.

Ouço cair uma chuva gentil lá fora
Mais agradável que esses meus dias
Sinto tanta saudade de sentir a demora
Das tardes quentes, das manhãs frias...

Mas a vida está aí, ela é feia, ela é dura
É boa de porrada, bate muito, muito bem
Espera pra te atacar numa esquina escura,
E depois de caído, te olhar com desdém.

Eis, que a semana molhada vai passando
Me retornam as forças, a dor diminui
A velha vontade de viver vai brotando
Já vou sendo outro, não mais quem fui

E o renascer dessas cinzas rotineiras
É a tônica de todo meu cotidiano
Como água a pingar de muitas torneiras
Ou as marés, com que conto meus anos.

(originalmente publicado em 13/06/2011)

Divagações

©Sxc.hu

Às vezes, é minha mente a divagar.
De vagar, de tanto vagar, ela cansa
Mesmo que vagueie devagar,
Mesmo quando a poesia a alcança,
O desânimo vem, e a faz hibernar

 Entra num ócio contido, um quase-sono
Um não-pensar desvalido de abrigo
Um morar em país estranho, sem patrono
É a mente a tropeçar, em território inimigo

Às vezes, é a vida e suas tragédias normais
Sejam más notícias, públicas ou privadas
Às vezes prejuízos, ou doenças mortais
Outras vezes, desilusões desamordaçadas

A mente flutua num âmbar cartilaginoso
Num pântano sutil de impressões a tirar
Uma selva implacável, habitat perigoso
E quase nenhum mapa para me guiar.

O segredo para sair, duramente aprendido
É ir pisando nas pedras que acaso encontrar
Mesmo que às vezes me suspeite perdido
Olha em torno, vê outra pedra onde possa pisar

Só se pisa na próxima, se mostrar-se segura
Firme, capaz de sustentar bem o peso
De nós, nossas vidas, dúvidas, amarguras
Pra seguirmos nosso caminho coeso
E partir de cada pedra, para trilhas futuras

E saindo dali, a mente descansa
Do repouso traz nova energia
Retoma um pouco do riso de criança
E abre espaço para a velha alegria.

sábado, 10 de março de 2012

Saudade


Tem momentos na vida em que a gente congela. Ficamos num estado estranho, no qual a inspiração até existe, mas não tem canal de saída. Aconteceu comigo recentemente. Um hiato de criatividade, um hiato de arte, um hiato de vida. É o que a gente sente na época posterior a uma perda. O falecimento de minha mãe, após seis meses de luta contra uma enfermidade difícil. Uma infecção fortíssima, concentrada na área dorsal da coluna. Descoberta, diagnóstico, tratamento, cirurgia, recuperação promissora, recaída e fim. Pegou a família de certa forma de surpresa, pois que ela, pessoa saudável durante toda a vida, jamais tinha ficado internada em hospital para nada que não fosse dar à luz os filhos. Ela, que do alto de seu 1 metro e meio, já tinha vencido desafios e dificuldades capazes de derrubar gigantes. Aparentemente venceria aquele desafio também. Infelizmente, não foi o que ocorreu, e a nossa pequena guerreira lutou sua última batalha. Com a coragem que lhe era peculiar, e com o apoio da família, até bem perto do último momento não dava mostras de que iria ser vencida, mas o momento derradeiro nos chega para todos, e para ela não foi diferente. Para nós ficou uma saudade imensa. Os procedimentos de velório, de enterro, e as semanas seguintes foram especialmente dolorosas. Burocracias, assuntos de cartórios, bancos, advogados, toda uma sorte de coisas que a família tem que resolver ainda navegando na dor de não ter mais alguém que há pouquíssimo tempo estava ali ao nosso lado. Nesse período, silenciei o que pude. Procurei fazer com que a dor, já que inevitável, fosse calma e trouxesse ensinamentos.

Guardei pouco mais de um mês de distanciamento de muita coisa, para poder colocar meus pobres neurônios em ordem. Guardei luto pela minha mãezinha, que faleceu no dia 3 de fevereiro passado. Logo depois que se passou o falecimento, fiquei pensando no que poderia escrever sobre isso. A emoção que eu sentia me fazia lembrar das milhares de elegias e homenagens que tantas pessoas já fizeram nesse mundo, nas pessoas que estampam fotos de entes queridos mortos na camisa, mas tudo isso me pareceu sem sentido. Como, se a saudade de alguém que me formou como ser humano é impossível de mensurar? Pensei muito nela, muito na pessoa dela, no jeito de ser dela e em tudo que aprendi com ela, e decidi fazer o que ela esperaria que eu fizesse. Mantive a cabeça erguida, segui com a vida. Dei meu tempo pro choro, dei meu tempo pra tristeza, mas segui com a vida. Isso foi o que minha mãe deixou de mais precioso como ensinamento para mim.

Aprendi com ela que a vida é difícil. Aprendi com ela que a vida é pra quem tem força, pra quem não se dobra, pra quem não se abate, pra quem apanha mas segue adiante. Aprendi com ela que amar o próximo não se trata apenas palavras doces e sorrisos, mas também querer o bem de quem se quer, e demonstrar isso até mesmo na hora de reclamar. Aprendi com ela a não dar razão para o erro, nem que seja um erro de quem nos é caro. Aprendi que quando gostamos dos nossos, cuidamos deles, e que cuidar muitas vezes envolve mais coisas que somente aprovar tudo que eles fazem. Com ela aprendi que podemos chorar, mas que não devemos chorar à toa. Que temos que ser bons, mas não devemos ser moles. Aprendi que a vida é mais feliz quando sabemos o que queremos. E que mesmo quando não sabemos o que queremos, saber o que não queremos é fundamental. Aprendi que as posses só trazem felicidade quando sabemos o que fazer com elas. Aprendi que devemos gostar de quem gosta de nós, e que a inversão dessa regra é a causa da infelicidade de muitas e muitas pessoas. Aprendi que por mais difícil que seja a vida, a honestidade é o único caminho certo, e que ter a consciência tranquila é uma benção que ajuda a gente a enfrentar as mais difíceis batalhas.

Poderia enfim, escrever ainda vários volumes sobre tudo que aprendi com ela, mas não viria ao caso. Basta dizer que do fundo da saudade que vai existir pra sempre em meu coração, aprendi com ela o fundamental. Na falta de meu pai, com quem não pude conviver desde os meus 5 anos e que faleceu quando eu tinha apenas 16, foi ela quem me ensinou praticamente tudo o que importa. Foi com ela que eu aprendi a ser um Homem. Isso sim, é uma herança a se deixar. Saudades pra sempre, D. Maroca!

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Por trás da Cortina de Algodão-Doce



             Não adianta negar. Também não adianta fantasiar a respeito. Uma hora passa. Uma hora esquecemos. Uma hora o cheiro vai embora, o toque da pele desaparece das nossas memórias e até mesmo a voz é perdida no passado. A não ser, claro que tenhamos a pessoa por perto (e perto o suficiente) para nos lembrarmos de todas essas coisas. Ou que tenhamos uma dose extra desse veneno chamado apego correndo em nossas veias.
             Alguns alegam que é inesquecível, que é algo que fica marcado pra sempre. Normalmente os mais românticos. É mentira. Principalmente porque românticos gostam de mentiras. Tem preferência pelas mentiras mais doces. Mentiras algodão-doce. Cheirosas, macias, atraentes (e tão nutritivas) como uma nuvem de açúcar presa a um palito.
             Na verdade, esse romantismo que aí está é uma grande máquina de produzir covardes. Só que produz covardes que pensam ser heróis. Seu intrincado mecanismo produz ilusões de grandeza que fazem o mais medíocre movimento tomar ares de bailado. E o mais injustificado dos vícios ganhar justificativas até os confins do tempo e do espaço. É um romantismo que se diz democrata, mas oculta um totalitarismo ferrenho. Uma vez instalado na qualidade de sistema de governo, ele produz fanáticos, capazes de isolar e enviar a gulags de preconceito qualquer um que sequer sugira existência de vida fora de suas róseas fronteiras. O tempo desse romantismo passou, seus índices e conquistas já não se sustentam mais. É causa que só continua arrebanhando seguidores à custa de estatísticas fraudadas e sistemático ataque a uma maioria que pouco é dada a pensar.
             Uma grande verdade é que a alternativa é difícil. Sentir de verdade e pagar o preço por isso, sem a ilusão atrelada de corações alados num céu cor-de-rosa? É tão duro quanto gratificante, apesar de ser uma atividade muitas vezes solitária. Saber-nos inteiros, e procurar pernas que andem ao nosso lado em vez de muletas que nos sustentem? É muitas vezes terreno árido, até frustrante. Buscar equilíbrio e paz em um mundo onde o extremismo e o conflito são vendidos como um amargo e padronizado pão de cada dia? Requer coragem negar esse pão, que os simplórios comem até acharem-no delicioso. Saber a diferença entre sentimento e sentimentalismo? Entre amor e romantismo? Entre beleza e pieguice? Há que se ter nervos de aço, estômago de avestruz, olhos de águia e por vezes, saber dar coices poderosos. Escapar de patrulhas de idiotas especialmente treinados cujas únicas e brutas armas são relativizar nosso desconforto e acusar-nos de generalizadores? Requer habilidades refinadas, argumentação sólida e paciência monástica, pois todas as missões são difíceis nessa zona de fronteira.
             Mas chega o momento em que você descobre que é possível. Que há um jeito. Que consegue-se esquecer, barrar a influência e a dor das velhas feridas. Um dia, aprende-se o que é o apego, reconhece-se quando ele nos domina, e os momentos em que ele é perfeitamente dispensável. E o dispensamos. À medida que caminhamos em nossa jornada, aprendemos uma preciosa lição. A nossa sobrevivência com saúde e qualidade de vida emocional depende puramente de aprender a escolher o que levamos conosco e o que deixamos para trás. Pra isso, precisamos ampliar o conceito, e usar nossa visão não só para enxergar, mas também para ver. Ter olhos para ver, é mais ou menos por aí.