segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Aprendendo e Vivendo VI - Parte 01



Miguel olhava o seu reflexo mal refletido na vidraça do ônibus. Lá fora, a estrada passava em alta velocidade, àrvores e cercas e vacas e cupinzeiros e casinhas. Numa viagem como aquela, seus sentimentos aproveitavam aqueles momentos para assombrá-lo como fantasmas zombeteiros. Pensava em Carlinha, não conseguia evitar. Um ano, apenas um ano depois, o que era a promissora perspectiva de um amor pra vida toda deixava apenas um gosto amargo na boca. Miguel se perguntava, ou perguntava às nuvens, ou ao sol, ou às montanhas no fundo da paisagem que passava em velocidade diante das janelas do ônibus, para onde tinha ido o amor que tanto perseguia? Já tinha se ferido tantas vezes, já tinha se iludido tantas vezes, que começava a perder as esperanças. Começava a achar que essa coisa de amor era um jogo de cassino. Uma roleta viciada onde a casa sempre ganha, deixando apenas algumas pequenas vitórias permitidas, para que o jogador se iluda e continue acreditando na possibilidade de quebrar a banca.

Conhecera Carlinha numa fase ótima. Já tinha se refeito do rompimento com Mariana, sua autoestima já estava novamente em ordem, voltara a sair ocasionalmente com seus amigos, apesar de manter-se o mais não-boêmio possível, como era característica sua. Mas tinha em seus círculos de amizade aquele pessoal que preferia programas diurnos no fim de semana, uma turma bastante variada, e numa dessas, num desses programas diurnos, seu caminho e o de Carlinha se cruzaram.

Vinha naquela fase boa, sem pensar muito em namorar, em se relacionar, não sentindo aquele vazio que o tinha arrastado quase obsessivamente a procurar o namoro, na época de Mariana. Tinha decidido que depois dela, iria realmente dar um tempo. E foi o que fez. O tempo dado lhe rendeu frutos, dedicou-se mais a alguns projetos extras que o pessoal da empresa vinha tocando, o que chamou a atenção da chefia. Em certo momento, foi solicitada a presença de alguém para viajar e apresentar um dos novos projetos em várias filiais pelo país afora, e aproveitou a oportunidade. Se ofereceu prontamente. As apresentações foram um sucesso, os chefes estavam contentes com seu desempenho e conseguiu uma promoção em função de sua dedicação e determinação naquela causa. O projeto agora estava em evidência, a chefia considerava um grande ponto marcado, tendo chamado a atenção até mesmo da matriz da empresa, nos Estados Unidos. Aquela viagem naquele ônibus, contemplando aquela janela era uma das decorrências do projeto para Miguel. Tinha ido até  a capital vizinha para mais uma reunião, embora seu estado de espírito nessa volta nada tivesse a ver com as boas perspectivas que eram vislumbradas para o projeto nesse próximo ano. Nesse momento, Miguel só conseguia pensar no ano que passou, e não no que estava por vir.

Carlinha. Aquela criatura alegre e agitada, aquele ser angelical de um metro e meio de altura, que usava roupas deliciosamente femininas e ao mesmo tempo encantadoramente provocantes, sem jamais sequer esbarrar em qualquer vulgaridade. A pessoa que Miguel esperava para sempre chamar de "sua menina", mesmo quando estivessem ambos velhinhos, pra lá dos 80 anos. Carlinha, aquela que numa dessas saídas, ele tinha conhecido através de um amigo em comum, saída também de um relacionamento fracassado. Carlinha, aquela que gostava das mesmas bandas que ele. Carlinha, aquela que tinha gostado de tantos filmes, livros e até mesmo desenhos animados em comum com ele, que em certos momentos parecia ter convivido com ele na mesma vizinhança da infância e adolescência, embora tivessem nascido e sido criados em estados e até regiões diferentes do país. Carlinha, aquela a quem ele de vontade própria escolhera para entregar seu coração remendado. Carlinha, aquela por quem ele derramava aquelas lágrimas amargas e lentas, naquele exato momento.

O relacionamento começou mesmo num momento em que Miguel não planejara, na verdade até esperava que passasse um bom tempo antes de tentar novamente. O trabalho ia de vento em popa, a alegria tinha retornado a sua vida, a diversão, os amigos presentes, as festas ocasionais, os pequenos prazeres da vida. Vivia uma fase feliz, apesar de seu coração jamais deixá-lo esquecer que tinha sido feito para estar ocupado. Miguel não conseguia enxergar uma felicidade completa estando sozinho. Sempre imaginou que um dia encontraria a mulher perfeita, aquela com quem formaria uma indissociável união. Aquela com quem poderia dar início a todo um novo universo. Por mais que o relacionamento com Mariana o tivesse machucado, ainda trazia essa ambição dentro de si. Ao conhecer Carlinha não levantou essa possibilidade de cara, mas surpreendeu-se com a promessa que essa nova pessoa passara a representar tão rápido para ele.

E agora no ônibus da estrada e do vidro refletindo suas lágrimas, no ônibus da estrada que passa rápida lá fora e das lágrimas que escorrem lentas cá dentro, Miguel tenta não pensar, mas pensa. Pensa em como se apaixonou rápido pelo jeito como Carlinha ri, pelo cuidado com que Carlinha segura o sanduíche na hora de comer, pelo jeito como ela joga o cabelo quando está entusiasmada contando alguma novidade. Ao mesmo tempo, passam como fantasmas diante de seus olhos, cenas como a forma com que Carlinha desviava seu olhar do dele no dia da conversa final. Ou a repentina frieza naquele olhar do qual ele se acostumara a receber tanto calor... (Ou não? - Se perguntava)... Chegava agora, no meio daquele poço escuro de emoções ruins recicladas, a duvidar se tanto calor tinha vindo dela ou se ele mesmo havia imaginado, idealizado e interiorizado tudo. Era possível. Era mais plausível até.

Era uma boa forma de explicar o acontecimento fatídico de semanas atrás. Miguel voltava de mais uma das frequentes viagens por conta do projeto, com  um ursinho de pelúcia que havia comprado para Carlinha. Voltava no sábado à noite, e pretendia combinar para se verem no domingo, mas Carlinha avisara que pretendia ficar o domingo com a mãe, que reclamava não a ver há um bom tempo. Iria encontrá-la no domingo bem cedo, passaria todo o dia com ela. Pretendiam ficar entre passeios, shopping, talvez um cinema, e a casa da mãe dela. Daí veio a idéia de Miguel, que levaria ao fim de tudo. Não sairia mesmo no sábado à noite, estaria descansado da viagem o suficiente para no domingo ainda pela manhã passar no prédio de Carlinha e deixar o presente na portaria, para ser entregue de surpresa quando ela chegasse.

No domingo, acabou saindo mais tarde que pretendia, o que fez com que chegasse à vizinhança de Carlinha pouco antes da hora do almoço. Parou com o carro, o enorme urso acomodado no banco de trás, como uma criança superdesenvolvida, bem perto da portaria do prédio dela. Após o sinal, ficava a rua que costumava entrar para estacionar melhor o carro, sob a sombra das árvores da rua atrás do condomínio. Por um momento, parecia que seu coração tinha sido esmagado por um punho gigante... parou. Dali a uma fração de segundo, começou a bater descontroladamente rápido. Viu um carro na portaria do prédio, um esportivo americano que já tinha visto em revistas, mas nem sabia que era vendido no Brasil. Dentro do carro, um cara e ao lado dele, Carlinha. Era Carlinha, sem dúvida. Cabelo, rosto, tudo conferia. Os dois sorriam. Carlinha ria de algo que o outro dissera, um riso de que Miguel não lembrava ter visto, pelo menos não há bastante tempo. Devido ao movimento fraco do trânsito, ninguém buzinou, as pessoas apenas desviavam do carro de Miguel, ainda parado no sinal. Os dois fizeram menção de sair do carro, e Miguel percebeu que alguns movimentos de Carlinha denotavam inconfundível intimidade. Seu coração batia em ritmo louco, descompassado, descontrolado, e seus braços e pernas estavam moles, como se não houvesse ossos. Alguma parte mais distante dentro do seu cérebro enviou um comando mudo a uma das mãos e ele acionou discretamente o pisca-alerta, de maneira que nem sua cabeça nem seus olhos se moveram do que acontecia na frente do prédio. Carlinha tinha saído do carro, vestia uma saída de praia, biquini por baixo. O sujeito, um cara alto e forte, com um cordão de metal indecentemente grosso no pescoço, vestindo bermuda de tactel e uma camiseta sem mangas, pareceu a Miguel um estereótipo ambulante, uma ofensa à sua intelectualidade. Um tipo que ele desprezaria, mesmo que jamais estivesse vendo naquele contexto. Aquelas pernas finas e aqueles bíceps com tatuagens estilo japonês... Aqueles óculos escuros tão previsíveis, aquele jeito arrogante. E aquele cordão! Aquele cordão parecendo uma coleira de cachorro, de um dourado horrível!

À medida que a cena se desenrolava, Miguel ia recuperando um pouco o movimento das pernas e dos braços, mas não que isso fizesse alguma diferença. Continuava atônito, capaz somente de assistir. Os dois se dirigiram à parte de trás do carro, e Carlinha parecia mais agitada e saltitante do que Miguel se lembrava. Alegre até. O cara abriu o porta-malas e tirou de lá uma sacola de conteúdo indefinido, e ao fechar foi simplesmente agarrado por Carlinha, que tinha se atirado nos braços dele. Como se nada mais importasse, como se não estivesse na rua, em frente ao prédio onde morava, à vista de algum vizinho, porteiros, gente que a conhecia. Começava a se formar um bolo amargo de ódio no estômago de Miguel, e ele soube instantaneamente que o motivo do bolo era tão e somente a felicidade (ou pelo menos alegria) que ela demonstrava naquela cena. Dirigiram-se à entrada do prédio, abraçados, quando começaram a subir as escadas que davam acesso à portaria, Miguel não pode deixar de perceber acintosa palmada que o cara deu na bunda de Carlinha, e a infinitamente mais acintosa reação dela: um sorriso.

Miguel não se lembrava muito bem o que aconteceu depois disso, mas de alguma forma conseguiu sair com o carro, e fazer o caminho que sempre fazia quando ia ao apartamento de Carlinha: contornou e acessou a rua bem pouco movimentada atrás do prédio dela, parou o carro e chorou como nunca tinha chorado antes na vida. Pode ter ficado bem umas cinco ou seis horas dentro daquele carro, chorando e boiando em sua piscina de autopiedade, pois já estava escurecendo quando finalmente teve forças para voltar pra casa.

Desde este dia, pouca coisa pode ser dita. As lágrimas no reflexo da janela do ônibus seriam mais eloquentes que o coração ou as palavras de Miguel naquele momento. Eram o resumo dos dias após aquela experiência. Obviamente, o pessoal do trabalho percebeu a diferença, perguntaram mas ele foi capaz de dar uma desculpa, inventara um problema de saúde convincente o bastante para que não o incomodassem mais por um tempo. A conversa que teve com Carlinha uns dias depois também poderia contar muito a respeito de como se sentia, mesmo que fosse apenas assistida por um vídeo, sem som algum. Engraçado, pensava ele, é que só naquela altura percebera que mesmo sem que ela soubesse que ele tinha visto a cena, ela não teria ligado para ele por dias. Era sempre ele quem ligava. Era sempre ele que procurava. Claro, ela respondia, ela interagia. Mas as iniciativas, as corridas atrás, eram dele. E quando ele não o fez, ela nem teve a capacidade de estranhar. Nem isso.

O encontro foi melancólico. Carlinha tinha aquele olhar indiferente, dolorosamente distante. Miguel procurou não perder a calma, disse o que viu, disse que estava magoado, disse que tinha imaginado um futuro à frente dos dois. Carlinha ficou calada na maioria do tempo. Não chorou, não fez menção de pedir perdão, não teve nenhuma atitude, exceto quando Miguel insinuou tocar no nome do rapaz que a acompanhava naquela data. Ela apenas interrompeu Miguel e pediu que ele não falasse de alguém que ele não sabia quem era, e assim, encerrava-se a conversa. Carlinha parecia um pouco triste, mas na verdade a expressão que ostentava misturava incômodo, um pouco de constrangimento, e uma vontade louca de não estar ali, de não estar tendo essa conversa. Recusou-se a dar qualquer detalhe, não disse o nome do rapaz, nem a natureza do relacionamento que tinha com ele, qualquer que fosse. Apenas olhou para Miguel uma vez, no olhar uma sombra distante (bem distante) do que já tinha sido um dia. No momento de dizer-lhe adeus. Miguel parecia a ponto de levantar, ajoelhar, correr, implorar, pedir que ficasse ou somente implodir em prantos, mas nada fez... Apenas ficou atônito, sentado no café da livraria onde tinham tido seu primeiro encontro como namorados... e onde tomava lugar o talvez derradeiro capítulo daquela história de um amor que foi escrita, vivida e contada por apenas um dos lados.