quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Viva o bandido brasileiro!*


Um bandido tem poder. Mas tem muitos que acham que não. Por mais que eu tenha engulhos quando alguém vem com aquele argumento batido de que o bandido é um excluído, um pária, um desfavorecido pela sociedade malvada, ainda tem muita gente boa por aí que sofre lavagem cerebral para repetir esse mantra. Sinto nesse tipo de posição uma canalhice tão profunda, um cheiro tão azedo de revoltinha revolucionária adolescente mal resolvida, que chega ao nível do patético. É o fedor de quando as pessoas agregam a uma ideologia um fervor tão religioso, de um fanatismo tamanho, que qualquer coisa dita em nome daquela ideologia passa a ser sagrada, assume ares de uma lei divina e indiscutível.

Mas um bandido tem poder. Diferente do que dizem os defensores ferrenhos dos direitos humanos dos criminosos, um bandido tem poder. Principalmente no Brasil. Nosso país é a pátria dos mais poderosos criminosos do mundo. Aqui, não são só os ricos, “as elites” que se beneficiam da impunidade. Nosso sistema, nossa segurança pública são tão falhos, tão falidos, que mesmo um ladrão pé-de-chinelo pode contar com boas possibilidades de receber seu quinhão de impunidade. Nisso o Brasil tem se superado cada vez mais: na socialização da impunidade. E mais, ao que parece, tem estendido aos bandidos vários benefícios, como se eles fossem parte de um programa não-oficial do governo. O que antes era chamado de roubo de cofre público, de corrupção, locupletação, hoje é chamado de forma carinhosa de “malfeito”. O que antes era um ladrão, um assassino, um criminoso comum, hoje é chamado de vítima da sociedade, considerado um indefeso que se revoltou com esse sistema tão mau que faz com que ele, para ter o tênis de marca, as correntes de ouro e o dinheiro para comprar sua diversão, precise roubar de quem conseguiu isso tudo, vejam só, trabalhando! É apenas um justiceiro, talvez, esse ora chamado bandido? Segundo a lógica (?) de alguns, o pobre rapaz armado com uma pistola representa um grito de revolta contra essas pessoas que se escravizam, trabalhando horas e horas para poder desfrutar essas mesmas coisas que o nosso valente rapaz da pistola pode roubar em questão de minutos. Ora, não é lindo esse raciocínio? Vamos defender o direito desse rapaz a um tratamento digno. Vamos impedir que as pessoas achem justo que ele seja preso, ou que sofra o risco de morrer por estar empreendendo este tipo de ação tão, digamos revolucionária.

Só que o bandido tem poder. O bandido tem o poder de uma arma de fogo carregada. Ele tem o poder conferido pela quase-certeza da impunidade. Ele tem o poder de privar da vida uma pessoa indefesa diante de sua agressão. Ele tem o poder de remover para sempre essa pessoa do convívio de seus familiares. Ele tem o poder de ser defendido por pessoas que se apressam em ver seu lado da história, mas que não tem tanta pressa assim em consolar ou procurar entender o lado dos milhões, milhões e mais milhões de pessoas, pobres, ricas, velhas, jovens, filhos, pais, irmãos, avós, uma infinita e muito mais importante amostra de gente. Todos esses milhões são as pessoas que não são criminosos, que não são assaltantes, que não são vagabundos, que não são bandidos, que não fazem apologia à vida de crime, que não fazem parte de uma organização criminosa. São apenas pessoas, são a maioria do país. São esses que tem seus direitos humanos diariamente esmagados sob o poder da violência. Sob o poder dos poderosos. Quem defende os direitos humanos deveria entender que somos todos humanos. Que defender direitos humanos é permitir que as crianças que brincam na favela desejem ser algo melhor que um ladrão que rouba motos armado de pistola. Que defender direitos humanos é pensar que um contexto social onde “a onda é ser bandido” mostra uma relação de poder distorcida e nociva. Quem defende direitos humanos deveria entender que correr para defender o direito do criminoso é uma afronta, um tapa na cara das avós, mães e irmãs que choram por seus filhos, netos, irmãos, que perdem a vida do outro lado do cano da arma de um rapaz que acha “sou sinistro mesmo, eu mato mesmo por que sou vagabundo”. E que isso acontece tanto no asfalto quanto na favela. Provavelmente até mais na favela que no asfalto, só que os defensores dos direitos humanos não entendem tanto de favela quanto pensam entender. Eles não percebem que o povo que vive na periferia quer ter uma vida melhor, quer poder trabalhar, e não gosta de viver tão próximo desses bandidos que os defensores dos direitos humanos acham tão românticos, tão contestadores.

Quem defende os direitos humanos deveria entender que uma vítima de latrocínio nada fez, não pediu para estar ali, mas que um assassino em um presídio lotado, teve que matar alguém para poder lá estar. Quem apressa-se a defender os criminosos gosta mesmo é de defender os poderosos. Porque? Ora, bandido tem poder. 
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* aviso do autor: o título desse post contém sarcasmo (essa explicação também)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A história de Kabaro - Parte 04

© Momotte2

Ao fim de minha primeira vida, meu espírito (ainda não plenamente consciente de si) começou a vagar sem rumo pelo que parecia ser uma região fria e nebulosa. Era tão diferente da terra ensolarada e com tantas paisagens diferentes onde vivi, que demorei a entender o que acontecia. Só percebi melhor o que se passava quando parei na beira de um riacho. Sentia sede, e me atraiu o agradável som de água rolando nas pedras. Parei á margem, e senti um incômodo muito forte ao observá-lo de perto. Apesar de não sentir cheiro algum, percebia o limo cinza e várias coisas atiradas no rio ou boiando, coisas estranhas que eu nunca tinha visto, algumas pareciam potes de barro, porém mais retas e feitas de algum material desconhecido. Objetos estranhos e aquele limo cinza nas pedras, que me impediram de sequer tentar beber dali. Ao me inclinar por sobre a margem para observar, pude ver meu reflexo e ele se parecia comigo no auge de minha juventude, e não com o velho cansado que eu lembrava ser nos últimos momentos de consciência, antes de meu espírito deixar meu velho corpo. Aquela cena me surpreendia tanto quanto o aspecto do rio. Me afastei, embora não antes de mirar o reflexo mais uma vez, com vontade de me agarrar àquela imagem de um homem jovem e saudável. Depois de ver o reflexo mais uma vez, dei as costas ao rio.

Em meio à névoa, voltando pelo caminho por onde tinha chegado ao curso d’água, identifiquei uma árvore enorme a alguma distância. Sua aparência era envelhecida e um tanto triste, porém não tão estranha aos meus olhos quanto o aspecto do rio cinzento. Acomodei-me perto de suas grandes raízes e observei minhas mãos e meus braços, que combinavam com a imagem de juventude que o reflexo do rio mostrou. Minha mente parecia funcionar com menos da metade da velocidade que me era costumeira, que era ainda ágil mesmo nos meus tempos de velhice já avançada. Cada pensamento agora demorava um tanto a se formar, e parecia passar muito tempo até que eu parasse de pensar em uma coisa e pudesse começar a pensar em outra. Quando alcancei a noção de que tinha partido da minha vida e que estava ali naquela região tão estranha em forma espiritual, a mente pareceu clarear um pouco. Minha velha curiosidade retornou, assim como um domínio mais próximo de meus pensamentos e tive vontade de explorar os arredores.

Olhei a árvore, percebi que também não se parecia com as árvores da minha terra, mas que combinava pefeitamente com a atmosfera soturna daquele lugar, que parecia flutuar entre flocos de uma grossa névoa cinzenta. De seus galhos pendiam folhas compridas e tristonhas, de um verde escuro e sóbrio. Sua casca cinzenta e repleta de liquens parecia fazer parte daquele local, e de nenhum outro mais. Seus galhos se estendiam até boa distância do tronco, bastante retorcidos porém sempre em uma direção definida. Em um deles, um pássaro preto. Olhei-o com curiosidade, pois se parecia com alguns de que me lembrava, embora não fosse igual a nenhum de que me lembrasse. À medida em que me aproximei do galho onde estava, me retribuiu um olhar, e o arrepio que senti me deu certeza de que havia inteligência no brilho por trás daqueles olhos de pássaro.

Fiquei parado, entre a curiosidade e a apreensão, enquanto o pássaro saltitava pelo galho até mais próximo de mim. Virou a cabeça algumas vezes, como se querendo me olhar por ângulos diferentes. Enfim emitiu um som com sua voz rouca, embora perfeitamente compreensível:

-Kabaro!

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Depredando e quebrando e seguindo a canção

Pixação em placa de ônibus - Av. Presidente Vargas, 14/06/2013
Eu mesmo tirei a foto.
Protestos foram organizados no Rio de Janeiro e em São Paulo nessa última semana, sob o mote de reclamar-se do recente aumento das passagens. Perfeito, protestar é um direito, é uma característica marcante de uma sociedade democrática, livre e onde há liberdade de expressão e opinião. Mas quando se olha uma situação como a desses últimos protestos de forma um pouco mais detalhada, analisa-se seus ângulos menos aparentes e principalmente, procura-se o que está por trás das aparências, algumas verdades inconvenientes acabam aparecendo. Mas ainda assim estão em seu direito de protestar.
Passeatas compostas por uma juventude cheguevarista filhos de funcionários públicos de carreira, cooptados por partidos de uma esquerda arcaicamente extremista. Passeatas coordenadas por sindicatos, partidos e organizações que ainda acreditam que a solução para os problemas do mundo é implantar a utopia da esquerda leninista, ou maoísta, ou talvez até polpotista. Mas ainda assim estão no direito democrático de ir à rua expor suas opiniões.
Eis que no ânimo exaltado da fúria revolucionária, da afliceta vermelha, um ou outro jovem faz uma pixaçãozinha aqui, quebra uma vidraça ali, destrói um ônibus acolá. Logo, nas redes sociais, pululam outros jovens (e alguns não tão jovens) apoiando, dizendo que “é isso mesmo”, “temos o direito de protestar”. Outros mais exaltados dizem que “tem que quebrar essa porra toda mesmo”, num arroubo de agressividade digna de um Capitão Nascimento (vejam só) em Tropa de Elite. Mas ora, esse não é o cara da esquerda, da paz e do amor?
E aí você observa a discussão, e aparece aquele velho discurso repetido, vomitado, regurgitado, digerido e vomitado de novo, isso sem parar, desde o século passado. É o mesmo papo que gira entre capitalistas nojentos, donos do capital, etecétera, etecétera. Só que como o governo federal é de esquerda (mesmo que o fato de estar sentado no trono faça com que não se comporte tanto como esquerda assim) os manifestantes não deixam claro que o protesto é por causa da inflação. Não dirigem sua fúria claramente em direção à presidência da república, ao congresso, aos deputados, aos governantes em geral. É um esperneio simbólico, uma pirraça violenta. Não há inteligência na manifestação. Não há direcionamento. E o que a sociedade vê são jovens nas ruas, de repente acontece um quebra-quebra, a polícia entra em cena, acontece o que sempre acontece nessas situações. Cenas de violência, truculência, polícia brasileira sendo polícia brasileira com toda a falta de gentileza que o conceito traz implícito.
Aí a gente se pergunta: Porque esses jovens não foram orientados a se manifestar contra os acordos entre os municípios e as empresas de ônibus, diante dos que os assinam? Porque os protestos não aconteceram de forma a pressionar quem de fato poderia resolver o problema? Porque os partidos, sindicatos e uniões estudantis que patrocinam esses protestos não estão fazendo protestos para exigir menos corrupção no congresso, mais e melhor educação, e a queda da inflação por parte do Governo Federal? Porque há um interesse diverso disso tudo por trás desses protestos. Eles se coordenam com protestos estimulados em todo o mundo. Quem monta esses protestos não está preocupado com o Brasil ser um país corrupto. Não pretendem, por mais ideológicamente imbuídos e idealistas que sejam, fazer o que é certo para o país. Pretendem sim impor sua opinião, nem que pra isso tenham que destruir a sociedade, para poderem construir outra por cima com as caraterísticas que eles irão impor.
Trabalho numa das principais ruas do centro do RJ e praticamente todo mês vemos um protesto. Uma hora é greve dos bancários, outra hora é o pessoal da saúde, algumas vezes são estudantes somente. Quando as manifestações são grandes, causam um certo transtorno no trânsito, atrapalham o funcionamento da cidade por algumas horas. Nessas manifestações, uma coisa é comum. Nunca, jamais são feitas de maneira a atrapalhar, impedir o trânsito ou transtornar a vida de alguém que poderia de fato resolver o problema da classe. Nenhuma manifestação dos bancários sequer chegou ao ouvido do proprietário do banco. Nenhuma passeata dos funcionários da saúde parou o trânsito em frente ao Palácio Guanabara ou na rua onde o governador, ou o prefeito moram, impedindo-o de sair de casa. Tampouco as organizações, partidos e entidades que promovem essas manifestações se interessam por expor as negociatas dos donos das cidades, em levar à justiça as máfias, em acabar com as injustiças. Eles não fazem isso pela simples razão de que isso não faz parte de sua agenda ideológica adestrada. E quanto mais próximo chegamos do topo dessas organizações políticas, mais íntimos do poder eles se tornam e aí eles não tem mais como bater de frente com esses mesmos “donos do poder capitalista”, pois em alguns casos sentam-se na mesma mesa e freqüentam os mesmos restaurantes que eles. Vide a relação de amor entre o atual governo do Rio de Janeiro, um certo bilionário carioca e suas conexões com bilhões e bilhões de incentivos generosamente negociados com o Governo Federal. Aí o pessoal dos partidos finge que não está vendo, da forma mais hipócrita possível.
De resto, me pergunto... Será que, caso esses jovens tão imbuídos de uma afliceta comuno-idealista, quisessem na Cuba de Fidel, sair às ruas para protestar contra o que quer que fosse, teriam sido tratados com mais suavidade pela Policía del Partidón? Suspeito que não...

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O mendigo e o poeta


João Carlos sentiu ânsias de espancar o cara. Mesmo ali naquele lugar tão agradável e numa tarde-quase-noite de temperatura amena. O sol despedindo-se do dia, as nuvens pintadas de um rosa ao mesmo tempo feminino e vital. Um fim de dia sexy, prenunciando uma noite promissora, aberta de possibilidades. Mesmo assim, diante de tal cenário, sentiu aquela vontade primitiva e urgente de espancar o cara.

Talvez fosse a aparência dele... Todo aquele despojamento cuidadosamente estudado, aquela falta de estilo flagrantemente estilosa. Aquele jeito relaxado e à vontade que parecia ser fruto de horas de treino diante do espelho. Ou talvez aquele cabelo limpíssimo e saudável, penteado cuidadosamente em dreadlocks de forma a parecer nojento, ensebado e preso com uma faixa. Talvez a roupa, que mesmo usada de forma a produzir uma aparência quase hippie, trazia em algum lugar a etiqueta de uma loja caríssima da Zona Sul. As sandálias de couro, também exibindo um pequeno logotipo de uma marca que não condizia com a intenção semiótica da figura que as trazia calçadas.

Mas depois, analisando em retrocesso aquele momento, João percebeu melhor. Lembrou que a gota amarga de irritação que desencadeou a vontade de empurrar a cabeça daquele indivíduo repetidas vezes contra parede até que seus dentes saltassem (ou até que seu rosto se transformasse em uma massa de carne não-identificável) era a maldita pasta. Na verdade, não a pasta azul de polionda que ele carregava, mas o fato de estar repleta de papéis. Papéis baratos, mal dobrados e xerocados com qualidade péssima. Papéis cobertos com desenhos irritantemente posicionados na fronteira entre o quase bem feitos e o infantilmente psicodélicos. Papéis com desenhos desesperadoramente previsíveis de mulheres virando rios ou árvores, de conexões entre homens e astros, planetas ou fluxos celestes. Desenhos de cidades se transformando em apocalipses, de ratos e morcegos protagonizando atos humanos. E por fim, a poesia. Sim, escritas à mão, entremeadas naquelas páginas, disputando espaço com os desenhos previsíveis, as denominadas poesias, oferecidas ali, na porta daquele centro cultural. Na porta de um prédio belíssimo, repleto de oportunidades de testemunhar poesia em cada pequeno detalhe, fosse ele de uma obra, de um pequeno gesto de um visitante, ou de uma pequena rachadura numa bela coluna antiga.

Como um mendigo na porta de uma igreja, que nada quer com Deus nem com reza, apenas desejoso de um trocado para a cachaça de logo mais, ali estava ele com sua maldita pasta azul.Como um mendigo que recusa a admoestação do velho padre, escolhendo firmar seu santíssimo, arrogante e autoproclamado direito à caridade dos trocados de quem passa, ali estava ele vendendo sua assim chamada poesia. Imbuído da mesma férrea certeza do mendigo na fé de sua cachaça, e na recusa da possibilidade de levantar-se da sujeira em direção a qualquer outra perspectiva da vida, o cara ofereceu a João sua poesia previsível. Ainda tomado pela ânsia de espancá-lo, sem que pudesse jamais explicar que tal ânsia não era, sobremaneira gratuita, João Carlos limitou-se a parar defronte a ele. E dizer quase entre dentes, com um olhar de indisfarçável ferocidade:
-Não obrigado. Quando quero poesia ruim, eu mesmo faço.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Criaturas da noite





Quando vemos filmes de terror, procuramos entrar em contato com certos sentimentos-limite numa atmosfera controlada. Gostamos da sensação de saber que podemos experimentar um pouco do susto, do arrepio, do desconforto, e que basta um botão para desligar tudo aquilo. Basta um STOP para que retornemos ao nosso mundinho confortável e seguro. Alguns de nós tornam-se entusiastas, admiradores, e até fanáticos por essa abdução para o mundo do macabro, do proibido, do quase impensável em nossa realidade tão controlada. Usamos os estímulos sensoriais que o terror ficcional nos proporciona como válvula de escape para muitas das nossas questões internas, um alívio ficcional para certas dores acumuladas em nossa psique, a grosso modo.

Até que um dia nos deparamos com o desconhecido, e a fronteira entre esses dois mundos deixa de ser clara. Até a hora em que ficamos frente a frente com uma situação que ameaça nossa sanidade. Até o momento em que o medo verdadeiro invade nosso ser, e ficamos no limite da perda do controle. Até agora.

Sinto o suor correndo pelas minhas costas, cada gota que brota da minha pele. Nunca meus sentidos estiveram tão aguçados. Nunca me senti tão alerta. Meu coração bate tão forte que sinto as veias pulsando em minhas têmporas e minha cabeça dói. Agarro a beirada do colchão, nesse momento interminável desde que me dei conta da presença da criatura. Nunca imaginei que pudesse ser assim. No meio da noite, acordar e pela janela aberta ver um rosto, uma presença, algo de fato. 

A luz da lua ilumina bastante lá fora, de maneira que posso ver seu contorno na janela com perfeição. Seu corpo magro, algo de um animal pelado, o formato esguio evidenciando uma elasticidade felina, e ainda assim a inconfundível percepção de uma inteligência humana, ou ao menos semelhante à humana, guiando seus movimentos. A criatura se mexe lentamente, se ajeita, a cabeça ora espreita para um lado, ora pra outro, os olhos com um brilho sinistro pregados em mim, tal os do gato em sua presa. A leveza com que alçou a beirada da janela, e se encarapitou como gárgula amaldiçoado no limite das trevas e da luz da lua, maldita leveza. As garras, muito brancas, muito proeminentes, evidentes mesmo na penumbra do quarto, parecendo absorver um pouco da luz que as ilumina.

Tento me mexer, mas cada pequeno movimento que faço gera uma reação, um aumento do estado de alerta da criatura, uma virada mais rápida da pequena cabeça. É como se procurasse ler meus pensamentos. No limite da sanidade, meu cérebro se inunda com avisos hormonais de perigo, de fuga, desespero. A mera presença da criatura ali, a poucos metros, me transmite a certeza de que aquele ser não-natural seria capaz de transpor a distância em uma fração de segundo. Meus olhos vasculham nervosamente em torno, à procura de algo que possa usar como arma. Celular, carteira, copo plástico, livro de bolso, nada que sirva na mesa de cabeceira. Quando tenho coragem de fixar o olhar na criatura percebo que o pequeno ser se levanta, exibindo uma postura perfeitamente humana e bípede, apesar de seu diminuto tamanho. Não passa de 70 centímetros de altura, o que só aumenta a estranheza com que meu cérebro registra a cena. A cada movimento do bicho (criatura, ser, duende, demônio?) minha pele se arrepia. O medo primordial inunda com seus hormônios e substâncias específicas a corrente sanguínea, que corre pelas veias com a força e velocidade absurdas conferidas por meu coração disparado. Algumas fracas memórias de terrores infantis reivindicam parentesco com essa nova experiência, mas com muito pouco sucesso. Um escorpião enorme que quase me mordeu, uma aranha caranguejeira, até o encontro com uma cobra venenosa no sítio do meu avô não conseguiram provocar nada próximo ao alerta máximo que meus sentidos experimentam agora.

Vejo nitidamente a face do pequeno ser. A pele parece de um cinza escuro, semelhante à de um cão com peladeira que vi um dia desses na rua. Mas diferente da pele agredida e enrugada do cão, é uma pele lisa, esticada sobre pequenos músculos retesados, prontos a saltar sobre mim. Seus olhos pretos como os de um animal, porém dotados de um brilho onde percebem-se propósito e inteligência. A cabeça pequena e redonda, com orelhas grandes, reluzentes e redobradas semelhantes ás de um gambá. O nariz não há, apenas dois orifícios alongados verticalmente, ligeiramente oblíquos, mais próximos na base. A boca, que antes encontrava-se fechada, abre-se nesse exato momento, mostrando uma fileira de dentes brancos, que me lembraram imediatamente os da piranha empalhada que meu avó tinha na estante da sala do sítio. Dentes curtos, rombudos na base, afilados na ponta, dentes de retalhar carne. À mostra agora, em exibição lado a lado num sorriso macabro e selvagem.

Não posso descrever com exatidão a cena que se segue. A criatura pula com destreza da janela para o chão do quarto, e uma eletricidade viva percorre meu corpo, fazendo com que eu me mexa mais rápido do que imaginei ser possível. Viro para a lateral da cama oposta á janela na fração de segundo seguinte, talvez num impulso de alcançar a porta. A criatura já passou por cima da cama, e se atirou sobre mim, como um cachorro pequeno enlouquecido, toda garras e dentes e cuspe e baba, e arranhões. Procuro defender meu rosto, embora sinta que ela me atinge de alguma maneira, estou anestesiado pelo absurdo. Em algum ponto dentro de mim, um instinto selvagem de sobrevivência, uma primitiva natureza animal faz com que eu esqueça de todo o resto e me concentre em agarrar a criatura, e percebo que consegui pegá-lo pela cintura fina, que talvez seja do diâmetro do meu pulso. Começo imediatamente e golpear sua cabeça na quina da perna da cama. Uma, duas, três vezes. Durante o processo, sinto sua fantástica musculatura forçando e toda sua selvageria arranhando, e mordendo, e tentando se libertar, mas ainda assim continuo batendo repetidamente até que ela pare de se mexer. Consigo ver na luz da lua e sinto meu rosto quente e percebo que me feri bastante. Nesse momento percebo que um dos meus olhos parece tampado, mas com o outro vejo o pequeno corpo inerte no chão. Enquanto levanto procuro o rosto e percebo muito sangue nas mãos. Antes de ir ao banheiro um resquício de selvageria faz com que eu pise repetidas vezes no pequeno corpo, e sinta os ossos se quebrando e órgãos estourando à medida que um sangue escuro se espalha pelo chão. Um certo prazer macabro me anestesia e mesmo consciente de meus ferimentos, um sorriso sinistro passa rapidamente por meu rosto. No banheiro, percebo que um dos lados do meu rosto é uma ruína de pele retalhada, lavado de sangue. Procuro uma toalha, tento parar o sangramento e lavar o ferimento. A dor não é tão forte, ainda estou sob o efeito do acontecido, em choque, talvez?

Um pensamento sinistro me vem, e se o bicho ainda estiver vivo? Volto ao quarto e me certifico que o corpo está no mesmo lugar, mas no silêncio da noite, ouço um som semelhante ao que ele emitia da janela, penso se não é meu cérebro pregando uma peça. Vou rápido até a janela, e ao olhar, meu coração finalmente resolve se render. Um mar cinzento de criaturas, cobrindo toda a vizinhança, nos muros, nos telhados nas calçadas. Do meu apartamento de fundos no segundo andar, vejo-os sobre postes, sobre carros, sobre latas de lixo, vejo aqueles milhares e milhares de olhos cintilando a luz da lua e das estrelas e tomado pelo mais profundo desespero, olho pra baixo e percebo um grupo deles escalando agilmente a parede do prédio em direção à minha janela.

A história de Kabaro – Parte 03



Assombrado pela agilidade do velho, que me pegou por baixo das axilas e me ergueu com facilidade, fiquei feliz e aliviado quando ele falou meu nome para toda a tribo ouvir: “Kabaro! Kabaro Camba!”
Também foi motivo de alívio o fato de eu não peidar nenhuma vez durante essa parte da cerimônia. Quando voltávamos pra casa, minha irmã começou a rir e falou baixinho: “Estava fedendo muito, viu?” Rimos bastante, e me lembro de ter ficado feliz. Demorei a dormir naquela noite, contemplando o teto de palha da nossa cabana e repetindo mil vezes em minha mente o meu novo nome, pelo qual eu seria conhecido e lembrado.
Assim, iniciou-se o que seria a minha primeira vida, através da qual eu cresceria forte, me transformaria em um habilíssimo caçador, um respeitado guerreiro, e aprenderia os caminhos da terra. Encontraria uma bela companheira, seria pai de muitos filhos e iniciaria uma grande descendência. A minha inteligência e a minha liderança ajudariam meu povo a se livrar de muitas dificuldades e um dia, eu alcançaria um papel fundamental na sobrevivência de minha gente. Em certa altura de minha vida adulta, enfrentaríamos duas pragas, uma de doença e outra de homens. Para não morrermos nem de uma nem de outra, tivemos que fugir e a minha esperteza e conhecimento seriam fundamentais para esse processo.
Ao termos que abandonar nossa terra, para renascer como uma tribo mais forte em um outro lugar, minha capacidade de manter nosso povo unido e confiante em nosso meio de vida seria recompensado com minha elevação a chefe, do que a princípio era uma tribo, e que com o passar das gerações, viria e se tornar uma nação.
Minha primeira vida começou na dúvida, mas terminou na certeza. Até então jamais o meu povo tinha passado por tão terríveis provações, e até então jamais meu povo tinha precisado tanto de um líder. E quando essa necessidade surgiu, eu assumi essa responsabilidade, não sem receios, não sem temor. Assumi a guarda daquelas pessoas famintas, expulsas de suas terras por agressão, por doença, por fome, por guerra. Como quem toma uma criança pequena e doente nos braços, incerto de sua sobrevivência, eu os acolhi. E a divindade sem nome que me escolheu, e que apenas ao velho curandeiro, meu velho mganga-avô deu a conhecer seu rosto, talvez tenha ajudado em minha missão. Me tornei rei, vivi muitos e muitos anos, lancei minha semente e espalhei meu nome e meus ensinamentos, e numa velhice tranqüila. Assim terminou minha primeira vida.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Do filho de uma feminista




Texto original retirado do site Theohumanity Project. Tradução feita por este que vos escreve...

"Meu nome é Edgar van de Giessen. Tenho 45 anos e sou o filho de uma das ex-líderes feministas da Holanda nos anos 70 do século passado. Minha mãe foi a primeira mulher a receber o Harriet Freezer Award, prêmio concedido pela Opzij Organization por destacado ativismo feminista. 
Eu não escrevo aqui em busca de qualquer simpatia pessoal. Escrevo para compartilhar meus sentimentos, para que talvez um dia homens e mulheres possam viver em amor e respeito, e não apenas em igualdade jurídica mútua. 
Antes de descrever as conseqüências pessoais da criação feminista que recebi enquanto garoto, entre os 7 e 17 anos de idade, eu gostaria de expressar meu respeito por todas as mulheres e homens que protestam legitimamente contra a repressão e a discriminação de gênero, cor da pele ou origem étnica.
Portanto, eu gostaria que vocês imaginassem como é para um garoto de 10 anos de idade crescer ouvindo todos os dias de sua mãe que “os homens são a causa de todos os problemas do mundo”, que “os homens são culpados de todos os crimes, guerras e repressão no mundo”, que “todos os homens deveriam ser castrados após terem seu sêmen congelado para garantir a existência da próxima geração”, que “os homens deveriam viver em cidades diferentes das mulheres, de maneira que eles poderiam todos matar-se uns aos outros e assim, resolver o problema de sua própria existência”.
Esse é o tipo de aprendizado feminista que eu recebia todos os dias, e que criou em mim uma profunda desconfiança de mim mesmo, da autoridade masculina, e um sentimento de nunca ser capaz de ser bom ou amável enquanto um ser humano, por causa da minha masculinidade. Tal fato causou em mim uma reação de provar à minha mãe que ao menos, como seu filho, eu era diferente dos outros homens. Isto se transformou rapidamente em arrogância com relação aos outros homens, o que me tornou solitário e desprovido de amigos pela maior parte da minha vida.
Também causou em mim um ódio para com as mulheres e uma raiva que eu podia apenas reprimir, pois expressá-la provaria que minha mãe estava certa. Assim, essa repressão me transformou em um homem “bom” como uma compensação pela repressão, que então, inevitavelmente trazia ocultos em si um ódio e agressão contra as mulheres, com fantasias de estupro e violência.
Como resultado dos efeitos de uma feminista raivosa sobre seu filho, eu precisei de 25 anos de busca terapêutica e espiritual e de uma profunda cura emocional para começar a encontrar minha própria auto-valorização e para começar a experimentar relacionamentos satisfatórios comigo mesmo, com homens e com mulheres.
A guerra entre os sexos ainda está sem solução. Os índices de divórcio falam sua própria triste verdade. A violência entre homens e mulheres ainda enche as páginas dos jornais e o feminismo não foi capaz de resolver este problema. No meu caso pessoal, o feminismo por si só, como é expresso em termos que sua organização especificamente defende, em grande parte criou problemas e não os impediu. E se o feminismo leva homens a odiar mulheres amaldiçoando a escuridão em vez de acender eficazmente uma vela, o próprio feminismo deveria se perguntar se é conhecedor o suficiente do coração humano e de sua complexidade para ser capaz de resolver os problemas que ele descreve.
Quando minha mãe me dava suas palestras e tiradas feministas quando eu era garoto, ela nunca sentiu, sequer uma vez em todos aqueles anos, como suas palavras e suas energias chegavam em seu próprio filho. Amor pessoal transaciona através da habilidade de sentir o que a outra pessoa está sentindo enquanto ela (ele) está sentindo. O sofrimento emocional que minha mãe me causou não vinha apenas de suas palavras, mas também de seu não-sentimento de como suas palavras me impactavam enquanto criança pequena. Dessas formas, minha mãe teve suas próprias feridas emocionais que a tornaram uma feminista orgulhosa e insensível e uma mulher odiadora-de-homens cuja antipatia para com os homens, de maneira apoiada por sua organização, se transformaram em mim num ódio por mim mesmo e pelas mulheres.
O que quero dizer é que mesmo que alguns aspectos do feminismo tenham um importante papel em criar direitos iguais para as mulheres, o feminismo não tem um contribuição positiva para que homens e mulheres vivam em respeito e amor um para com o outro. Minha intensiva criação feminista desenvolveu exatamente o contrário. Um homem emocionalmente saudável nunca terá nenhum desejo de oprimir uma mulher. Uma mulher emocionalmente saudável nunca terá nenhum desejo de agredir um homem com as próprias armas dele.
O feminismo dos anos 70 e 80, cujo legado herdamos é um movimento reativo que usava a mesma energia opressiva que o próprio movimento se propunha a lutar contra, em vez de trabalhar os problemas reais, e portanto nunca poderá ser bem sucedido em criar uma atmosfera onde uma amorosa e poderosa feminilidade poderia florescer em uma atmosfera confiável e respeitosa para com a força masculina. Eu sinto e compreendo que as mulheres só podem respeitar a força masculina se a mesma estiver baseada numa sincera vulnerabilidade, mas o feminismo e o movimento de emancipação falharam em criar uma geração de homens assim, e elas próprias não possuem os meios de fazê-lo.
Dessa forma, o movimento feminista não pode e não consegue reconhecer as repercussões seminais do fato de que cada homem é criado em grande parte por uma mulher, e que seu relacionamento aduto com as mulheres conscientemente e inconscientemente é determinado nesta mesma grande parte por seu relacionamento com sua mãe. Porque o feminismo não desenvolveu uma visão a respeito de como educar garotos para se tornarem homens fortes e amorosos, em quem as mulheres podem confiar e amar? Como podem os garotos se transformarem em homens que reprimem, odeiam, desprezam ou não respeitam as mulheres? Eu estou convencido de que, se um garoto receber um amor emocionalmente saudável de sua mãe, não há como isso acontecer!
Nesse sentido, ao feminismo sempre faltou uma visão do que é a saúde emocional, de como um amor emocionalmente saudável pode ser transacionado de um coração humano para outro, de mãe para filho, de pai para filha, de homem para mulher e de mulher para homem.
Sem esta visão, cuja falta nunca poderia ser percebida dentro da visão míope que o movimento tinha a respeito do coração humano, independente de gênero, o feminismo permanece um movimento meramente reativo que incorpora assim os mesmos temas que nos homens ele considera errados, e tristemente nunca irá permitir que o próprio feminismo atinja seu propósito.
Sinceramente,
Edgar van de Giessen"

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Viagem




Às vezes, a pretensão é uma bosta, e às vezes essa bosta é de proporções cinematográficas. Por "bosta grande" entenda-se aqui no universo desta pequena resenha, um filme que vem com certo pedigree. Produção milionária, grandes atores, diretor(es) famoso(s), e toda uma campanha pesadíssima escorando seu background, tudo como manda o figurino. Um filme pensado, produzido e preparado para ser alçado à categoria de "filme do ano", imagine só. Aí o cinéfilo, o nobre espectador, por mais escolado que seja na arte de não permitir-se iludir pela expectativa, não deixa de pensar que ali se verá algo de novo, algo de instigante, no mínimo algo de qualidade.

Então o cinéfilo acomoda-se confortavelmente para assistir o tão falado Cloud Atlas, "A Viagem" no Brasil. E ao fim dos longos cento e setenta e dois minutos de projeção, percebe que não adiantou ser dirigido pelos irmãos Wachowski, da trilogia Matrix. Não adiantou estar recheado de bons atores, veteranos consagrados ou caras relativamente novas e talentosas. Não adiantou ter uma premissa intrigante e um formato de storytelling ainda com boas opções para ser explorado. Não adiantou misturar o velho com o novo. Não adiantou nem o Tom Hanks com a cara tatuada. O filme fracassa em todas as tentativas.

A parcela de história de época não oferece nada que já não tenhamos visto em O Mestre dos Mares ou Amistad. A porção de romance entre os dois rapazes e a ida de um deles para viver junto a um mestre da música nos traz ecos de O Talentoso Ripley e Confissões de um Sedutor. A epopeia pós-apocalíptica de Tom Hanks nos lembra com certa tristeza o Waterworld de Kevin Costner e os piores momentos da série Mad Max. O futuro em uma Coreia distópica e altamente tecnológica nos lembra demais a trilogia Matrix para que consigamos nos conectar à realidade deste filme, como seria necessário para absorver melhor todo o quadro proposto pela obra. A personagem de Halle Berry com suas aventuras na pele de uma repórter "dinâmica e descolada" nos anos 70, e graça das peripécias do personagem de Jim Broadbent tentando fugir de um asilo nos dias de hoje não seguram o filme, mesmo sendo um pouco mais bem dirigidas e ambientadas que as outras. A despeito do talento e qualidade comprovada do trabalho da maioria dos atores, não há o que fazer quando a direção tem a mão pesada, quando o roteiro apresenta situações um tanto forçadas (o velho truque da marca de nascença que se repete, Batman!) e quando a sensibilidade necessária à compreensão do roteiro em vários pontos da história é terrivelmente comprometida pela fragmentação da própria narrativa.

Outro ponto negativo (que deve ter parecido uma ideia excelente no papel, mas que o departamento de "vai dar merda" falhou em alertar aos produtores) é a questão da distribuição dos papéis entre atores orientais e ocidentais e vice-versa. Basicamente na parte da trama passada na Coreia, os atores ficaram desamparados por uma das piores maquiagens que eu já vi nos últimos tempos. A coisa ficou tão canhestra que em certos pontos deixa-se de prestar atenção ao desenvolvimento da história, pois a ruindade da maquiagem faz com que só se consiga reparar nisso. Levando-se em conta que é um filme caríssimo, de uma equipe que está habituada a orçamentos astronômicos e a efeitos especiais de ponta, este fato torna-se imperdoável. A caracterização da enfermeira interpretada por Hugo Weaving no asilo é algo digno de um prêmio Framboesa de Ouro. A cena da briga no bar entre britânicos e escoceses é material para estar em um filme d'Os Trapalhões, em sua pior fase, já sem o Mussum e o Zacarias.

Para fechar, o que deveria ser o mais bem guardado e impactante segredo do filme, algo que poderia fazer muita diferença em termos de motivação da história, simplesmente é estragado por uma citação no próprio filme, que qualquer pessoa que tenha um conhecimento médio de cinema (ou que tenha assistido ao “Supercine” e à “Terça Nobre” nos anos 70 ou 80) irá sacar, e voltar sua atenção para aquele fato, se não estragando a surpresa mais à frente, pelo menos enfraquecendo muito seu impacto. Lógico que não direi o que é, pra não dar spoiler ao eventual leitor da velha guarda. Concluo dizendo que a pretensão é perigosa, e se ela é a força motriz por trás de um filme, o sério risco dele acabar virando um filme bosta é grande. Aconteceu com esse "A Viagem".

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O verão do óbvio

©Ivo Gonzalez, O Globo.
É verão, é chuva, é tragédia, é confusão, é tudo isso junto e ao mesmo tempo agora. Percebo a vida revolvendo o fundo de areia da minha vida-aquário, levantando velhos detritos que há tempos tinham assentado. Lá no fundo da mente, uma sensação de incômodo desperta e a vontade de reclamar se faz mais forte que a concentração no que quer que seja que eu faça. A vida lá fora começa a interferir demais em minha paz de espírito. Abro a janela imaginária da minha mente e a lufada do inconfundível e absurdo ar quente que me atinge me lembra imediatamente da estação do ano.

É o verão da presidência anunciando que o custo da energia elétrica vai cair, poucas semanas antes de se iniciarem uma série de apagões de todos os tamanhos. Quedas de energia a granel, movimentadas pela falta de investimento e pela sobra de negociatas em vários níveis. O calor batendo recordes históricos, competindo apenas com o alcance da impunidade de muitos. Institucionaliza-se o “não to nem aí, eu sou intocável”, admite-se que é assim porque é assim mesmo e vai-se em frente. Suando, mas em frente.
É o verão da carioquice festiva, do oba-oba da próxima nova modinha de Ipanema, da especulação em cima de quais serão as contratações do futebol pra próxima temporada. Verão de gente porca que como todos os anos e cada vez mais, traz sua deseducada presença à beira do mar e deixa em forma de lixo e desrespeito à civilidade. Ficam assim toneladas de oferendas a uma Iemanjá impossível de ser reciclada. É o Rio de Janeiro que é bonito só por natureza mesmo, pois cada vez mais se distancia da terra de maravilhas que um dia já se candidatou a ser.  Inchado de gente, carente de educação, incapaz de fazer nada mais competente e profissional que alguns malabarismos nos sinais de trânsito para tentar arrancar alguns trocados dos turistas.

É o verão da chuva que cai no fim da tarde, alagando aqui, infiltrando ali, fazendo algum bairro parar, e uma ou outra cidade das cercanias entrar em estado de emergência. É verão e a lama que normalmente vive em estado simbólico nos gabinetes políticos e presidências de grandes empresas, assume um corpo real e sai pra passear no meio do povo. É o verão onde um sambista com fama de bebum mostra muito mais valor e comprometimento com a comunidade (que informalmente representa) do que um governador com fama de cocainômano para com a comunidade da qual é representante oficial. No que tange esse assunto, esse verão é só mais um.

É o calor da chegada da nova temporada do reality show mais assistido da TV, é o calor da guerra de egos entre artistas que vivem em blisters de plástico, é o calor da eterna espera por um carnaval, fazendo com que um mês inteiro não simbolize absolutamente nada. É o calor da raiva gerada por depender de serviços em um lugar onde o ano só começa depois do segundo mês do ano. É mais um verão dos assaltos, mais um verão de promessas não cumpridas, de engarrafamentos para chegar à praia, e de falta d’água quando se volta dela. É no calor desse verão que um dia Lulu Santos cantou que como as ondas do mar, tudo muda, o tempo todo, no mu-u-un-do... Só esqueceu de falar que no verão do Rio de Janeiro se as coisas não continuam exatamente as mesmas, elas sempre podem piorar.