quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Viagem




Às vezes, a pretensão é uma bosta, e às vezes essa bosta é de proporções cinematográficas. Por "bosta grande" entenda-se aqui no universo desta pequena resenha, um filme que vem com certo pedigree. Produção milionária, grandes atores, diretor(es) famoso(s), e toda uma campanha pesadíssima escorando seu background, tudo como manda o figurino. Um filme pensado, produzido e preparado para ser alçado à categoria de "filme do ano", imagine só. Aí o cinéfilo, o nobre espectador, por mais escolado que seja na arte de não permitir-se iludir pela expectativa, não deixa de pensar que ali se verá algo de novo, algo de instigante, no mínimo algo de qualidade.

Então o cinéfilo acomoda-se confortavelmente para assistir o tão falado Cloud Atlas, "A Viagem" no Brasil. E ao fim dos longos cento e setenta e dois minutos de projeção, percebe que não adiantou ser dirigido pelos irmãos Wachowski, da trilogia Matrix. Não adiantou estar recheado de bons atores, veteranos consagrados ou caras relativamente novas e talentosas. Não adiantou ter uma premissa intrigante e um formato de storytelling ainda com boas opções para ser explorado. Não adiantou misturar o velho com o novo. Não adiantou nem o Tom Hanks com a cara tatuada. O filme fracassa em todas as tentativas.

A parcela de história de época não oferece nada que já não tenhamos visto em O Mestre dos Mares ou Amistad. A porção de romance entre os dois rapazes e a ida de um deles para viver junto a um mestre da música nos traz ecos de O Talentoso Ripley e Confissões de um Sedutor. A epopeia pós-apocalíptica de Tom Hanks nos lembra com certa tristeza o Waterworld de Kevin Costner e os piores momentos da série Mad Max. O futuro em uma Coreia distópica e altamente tecnológica nos lembra demais a trilogia Matrix para que consigamos nos conectar à realidade deste filme, como seria necessário para absorver melhor todo o quadro proposto pela obra. A personagem de Halle Berry com suas aventuras na pele de uma repórter "dinâmica e descolada" nos anos 70, e graça das peripécias do personagem de Jim Broadbent tentando fugir de um asilo nos dias de hoje não seguram o filme, mesmo sendo um pouco mais bem dirigidas e ambientadas que as outras. A despeito do talento e qualidade comprovada do trabalho da maioria dos atores, não há o que fazer quando a direção tem a mão pesada, quando o roteiro apresenta situações um tanto forçadas (o velho truque da marca de nascença que se repete, Batman!) e quando a sensibilidade necessária à compreensão do roteiro em vários pontos da história é terrivelmente comprometida pela fragmentação da própria narrativa.

Outro ponto negativo (que deve ter parecido uma ideia excelente no papel, mas que o departamento de "vai dar merda" falhou em alertar aos produtores) é a questão da distribuição dos papéis entre atores orientais e ocidentais e vice-versa. Basicamente na parte da trama passada na Coreia, os atores ficaram desamparados por uma das piores maquiagens que eu já vi nos últimos tempos. A coisa ficou tão canhestra que em certos pontos deixa-se de prestar atenção ao desenvolvimento da história, pois a ruindade da maquiagem faz com que só se consiga reparar nisso. Levando-se em conta que é um filme caríssimo, de uma equipe que está habituada a orçamentos astronômicos e a efeitos especiais de ponta, este fato torna-se imperdoável. A caracterização da enfermeira interpretada por Hugo Weaving no asilo é algo digno de um prêmio Framboesa de Ouro. A cena da briga no bar entre britânicos e escoceses é material para estar em um filme d'Os Trapalhões, em sua pior fase, já sem o Mussum e o Zacarias.

Para fechar, o que deveria ser o mais bem guardado e impactante segredo do filme, algo que poderia fazer muita diferença em termos de motivação da história, simplesmente é estragado por uma citação no próprio filme, que qualquer pessoa que tenha um conhecimento médio de cinema (ou que tenha assistido ao “Supercine” e à “Terça Nobre” nos anos 70 ou 80) irá sacar, e voltar sua atenção para aquele fato, se não estragando a surpresa mais à frente, pelo menos enfraquecendo muito seu impacto. Lógico que não direi o que é, pra não dar spoiler ao eventual leitor da velha guarda. Concluo dizendo que a pretensão é perigosa, e se ela é a força motriz por trás de um filme, o sério risco dele acabar virando um filme bosta é grande. Aconteceu com esse "A Viagem".

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O verão do óbvio

©Ivo Gonzalez, O Globo.
É verão, é chuva, é tragédia, é confusão, é tudo isso junto e ao mesmo tempo agora. Percebo a vida revolvendo o fundo de areia da minha vida-aquário, levantando velhos detritos que há tempos tinham assentado. Lá no fundo da mente, uma sensação de incômodo desperta e a vontade de reclamar se faz mais forte que a concentração no que quer que seja que eu faça. A vida lá fora começa a interferir demais em minha paz de espírito. Abro a janela imaginária da minha mente e a lufada do inconfundível e absurdo ar quente que me atinge me lembra imediatamente da estação do ano.

É o verão da presidência anunciando que o custo da energia elétrica vai cair, poucas semanas antes de se iniciarem uma série de apagões de todos os tamanhos. Quedas de energia a granel, movimentadas pela falta de investimento e pela sobra de negociatas em vários níveis. O calor batendo recordes históricos, competindo apenas com o alcance da impunidade de muitos. Institucionaliza-se o “não to nem aí, eu sou intocável”, admite-se que é assim porque é assim mesmo e vai-se em frente. Suando, mas em frente.
É o verão da carioquice festiva, do oba-oba da próxima nova modinha de Ipanema, da especulação em cima de quais serão as contratações do futebol pra próxima temporada. Verão de gente porca que como todos os anos e cada vez mais, traz sua deseducada presença à beira do mar e deixa em forma de lixo e desrespeito à civilidade. Ficam assim toneladas de oferendas a uma Iemanjá impossível de ser reciclada. É o Rio de Janeiro que é bonito só por natureza mesmo, pois cada vez mais se distancia da terra de maravilhas que um dia já se candidatou a ser.  Inchado de gente, carente de educação, incapaz de fazer nada mais competente e profissional que alguns malabarismos nos sinais de trânsito para tentar arrancar alguns trocados dos turistas.

É o verão da chuva que cai no fim da tarde, alagando aqui, infiltrando ali, fazendo algum bairro parar, e uma ou outra cidade das cercanias entrar em estado de emergência. É verão e a lama que normalmente vive em estado simbólico nos gabinetes políticos e presidências de grandes empresas, assume um corpo real e sai pra passear no meio do povo. É o verão onde um sambista com fama de bebum mostra muito mais valor e comprometimento com a comunidade (que informalmente representa) do que um governador com fama de cocainômano para com a comunidade da qual é representante oficial. No que tange esse assunto, esse verão é só mais um.

É o calor da chegada da nova temporada do reality show mais assistido da TV, é o calor da guerra de egos entre artistas que vivem em blisters de plástico, é o calor da eterna espera por um carnaval, fazendo com que um mês inteiro não simbolize absolutamente nada. É o calor da raiva gerada por depender de serviços em um lugar onde o ano só começa depois do segundo mês do ano. É mais um verão dos assaltos, mais um verão de promessas não cumpridas, de engarrafamentos para chegar à praia, e de falta d’água quando se volta dela. É no calor desse verão que um dia Lulu Santos cantou que como as ondas do mar, tudo muda, o tempo todo, no mu-u-un-do... Só esqueceu de falar que no verão do Rio de Janeiro se as coisas não continuam exatamente as mesmas, elas sempre podem piorar.