quarta-feira, 3 de abril de 2013

Criaturas da noite





Quando vemos filmes de terror, procuramos entrar em contato com certos sentimentos-limite numa atmosfera controlada. Gostamos da sensação de saber que podemos experimentar um pouco do susto, do arrepio, do desconforto, e que basta um botão para desligar tudo aquilo. Basta um STOP para que retornemos ao nosso mundinho confortável e seguro. Alguns de nós tornam-se entusiastas, admiradores, e até fanáticos por essa abdução para o mundo do macabro, do proibido, do quase impensável em nossa realidade tão controlada. Usamos os estímulos sensoriais que o terror ficcional nos proporciona como válvula de escape para muitas das nossas questões internas, um alívio ficcional para certas dores acumuladas em nossa psique, a grosso modo.

Até que um dia nos deparamos com o desconhecido, e a fronteira entre esses dois mundos deixa de ser clara. Até a hora em que ficamos frente a frente com uma situação que ameaça nossa sanidade. Até o momento em que o medo verdadeiro invade nosso ser, e ficamos no limite da perda do controle. Até agora.

Sinto o suor correndo pelas minhas costas, cada gota que brota da minha pele. Nunca meus sentidos estiveram tão aguçados. Nunca me senti tão alerta. Meu coração bate tão forte que sinto as veias pulsando em minhas têmporas e minha cabeça dói. Agarro a beirada do colchão, nesse momento interminável desde que me dei conta da presença da criatura. Nunca imaginei que pudesse ser assim. No meio da noite, acordar e pela janela aberta ver um rosto, uma presença, algo de fato. 

A luz da lua ilumina bastante lá fora, de maneira que posso ver seu contorno na janela com perfeição. Seu corpo magro, algo de um animal pelado, o formato esguio evidenciando uma elasticidade felina, e ainda assim a inconfundível percepção de uma inteligência humana, ou ao menos semelhante à humana, guiando seus movimentos. A criatura se mexe lentamente, se ajeita, a cabeça ora espreita para um lado, ora pra outro, os olhos com um brilho sinistro pregados em mim, tal os do gato em sua presa. A leveza com que alçou a beirada da janela, e se encarapitou como gárgula amaldiçoado no limite das trevas e da luz da lua, maldita leveza. As garras, muito brancas, muito proeminentes, evidentes mesmo na penumbra do quarto, parecendo absorver um pouco da luz que as ilumina.

Tento me mexer, mas cada pequeno movimento que faço gera uma reação, um aumento do estado de alerta da criatura, uma virada mais rápida da pequena cabeça. É como se procurasse ler meus pensamentos. No limite da sanidade, meu cérebro se inunda com avisos hormonais de perigo, de fuga, desespero. A mera presença da criatura ali, a poucos metros, me transmite a certeza de que aquele ser não-natural seria capaz de transpor a distância em uma fração de segundo. Meus olhos vasculham nervosamente em torno, à procura de algo que possa usar como arma. Celular, carteira, copo plástico, livro de bolso, nada que sirva na mesa de cabeceira. Quando tenho coragem de fixar o olhar na criatura percebo que o pequeno ser se levanta, exibindo uma postura perfeitamente humana e bípede, apesar de seu diminuto tamanho. Não passa de 70 centímetros de altura, o que só aumenta a estranheza com que meu cérebro registra a cena. A cada movimento do bicho (criatura, ser, duende, demônio?) minha pele se arrepia. O medo primordial inunda com seus hormônios e substâncias específicas a corrente sanguínea, que corre pelas veias com a força e velocidade absurdas conferidas por meu coração disparado. Algumas fracas memórias de terrores infantis reivindicam parentesco com essa nova experiência, mas com muito pouco sucesso. Um escorpião enorme que quase me mordeu, uma aranha caranguejeira, até o encontro com uma cobra venenosa no sítio do meu avô não conseguiram provocar nada próximo ao alerta máximo que meus sentidos experimentam agora.

Vejo nitidamente a face do pequeno ser. A pele parece de um cinza escuro, semelhante à de um cão com peladeira que vi um dia desses na rua. Mas diferente da pele agredida e enrugada do cão, é uma pele lisa, esticada sobre pequenos músculos retesados, prontos a saltar sobre mim. Seus olhos pretos como os de um animal, porém dotados de um brilho onde percebem-se propósito e inteligência. A cabeça pequena e redonda, com orelhas grandes, reluzentes e redobradas semelhantes ás de um gambá. O nariz não há, apenas dois orifícios alongados verticalmente, ligeiramente oblíquos, mais próximos na base. A boca, que antes encontrava-se fechada, abre-se nesse exato momento, mostrando uma fileira de dentes brancos, que me lembraram imediatamente os da piranha empalhada que meu avó tinha na estante da sala do sítio. Dentes curtos, rombudos na base, afilados na ponta, dentes de retalhar carne. À mostra agora, em exibição lado a lado num sorriso macabro e selvagem.

Não posso descrever com exatidão a cena que se segue. A criatura pula com destreza da janela para o chão do quarto, e uma eletricidade viva percorre meu corpo, fazendo com que eu me mexa mais rápido do que imaginei ser possível. Viro para a lateral da cama oposta á janela na fração de segundo seguinte, talvez num impulso de alcançar a porta. A criatura já passou por cima da cama, e se atirou sobre mim, como um cachorro pequeno enlouquecido, toda garras e dentes e cuspe e baba, e arranhões. Procuro defender meu rosto, embora sinta que ela me atinge de alguma maneira, estou anestesiado pelo absurdo. Em algum ponto dentro de mim, um instinto selvagem de sobrevivência, uma primitiva natureza animal faz com que eu esqueça de todo o resto e me concentre em agarrar a criatura, e percebo que consegui pegá-lo pela cintura fina, que talvez seja do diâmetro do meu pulso. Começo imediatamente e golpear sua cabeça na quina da perna da cama. Uma, duas, três vezes. Durante o processo, sinto sua fantástica musculatura forçando e toda sua selvageria arranhando, e mordendo, e tentando se libertar, mas ainda assim continuo batendo repetidamente até que ela pare de se mexer. Consigo ver na luz da lua e sinto meu rosto quente e percebo que me feri bastante. Nesse momento percebo que um dos meus olhos parece tampado, mas com o outro vejo o pequeno corpo inerte no chão. Enquanto levanto procuro o rosto e percebo muito sangue nas mãos. Antes de ir ao banheiro um resquício de selvageria faz com que eu pise repetidas vezes no pequeno corpo, e sinta os ossos se quebrando e órgãos estourando à medida que um sangue escuro se espalha pelo chão. Um certo prazer macabro me anestesia e mesmo consciente de meus ferimentos, um sorriso sinistro passa rapidamente por meu rosto. No banheiro, percebo que um dos lados do meu rosto é uma ruína de pele retalhada, lavado de sangue. Procuro uma toalha, tento parar o sangramento e lavar o ferimento. A dor não é tão forte, ainda estou sob o efeito do acontecido, em choque, talvez?

Um pensamento sinistro me vem, e se o bicho ainda estiver vivo? Volto ao quarto e me certifico que o corpo está no mesmo lugar, mas no silêncio da noite, ouço um som semelhante ao que ele emitia da janela, penso se não é meu cérebro pregando uma peça. Vou rápido até a janela, e ao olhar, meu coração finalmente resolve se render. Um mar cinzento de criaturas, cobrindo toda a vizinhança, nos muros, nos telhados nas calçadas. Do meu apartamento de fundos no segundo andar, vejo-os sobre postes, sobre carros, sobre latas de lixo, vejo aqueles milhares e milhares de olhos cintilando a luz da lua e das estrelas e tomado pelo mais profundo desespero, olho pra baixo e percebo um grupo deles escalando agilmente a parede do prédio em direção à minha janela.

A história de Kabaro – Parte 03



Assombrado pela agilidade do velho, que me pegou por baixo das axilas e me ergueu com facilidade, fiquei feliz e aliviado quando ele falou meu nome para toda a tribo ouvir: “Kabaro! Kabaro Camba!”
Também foi motivo de alívio o fato de eu não peidar nenhuma vez durante essa parte da cerimônia. Quando voltávamos pra casa, minha irmã começou a rir e falou baixinho: “Estava fedendo muito, viu?” Rimos bastante, e me lembro de ter ficado feliz. Demorei a dormir naquela noite, contemplando o teto de palha da nossa cabana e repetindo mil vezes em minha mente o meu novo nome, pelo qual eu seria conhecido e lembrado.
Assim, iniciou-se o que seria a minha primeira vida, através da qual eu cresceria forte, me transformaria em um habilíssimo caçador, um respeitado guerreiro, e aprenderia os caminhos da terra. Encontraria uma bela companheira, seria pai de muitos filhos e iniciaria uma grande descendência. A minha inteligência e a minha liderança ajudariam meu povo a se livrar de muitas dificuldades e um dia, eu alcançaria um papel fundamental na sobrevivência de minha gente. Em certa altura de minha vida adulta, enfrentaríamos duas pragas, uma de doença e outra de homens. Para não morrermos nem de uma nem de outra, tivemos que fugir e a minha esperteza e conhecimento seriam fundamentais para esse processo.
Ao termos que abandonar nossa terra, para renascer como uma tribo mais forte em um outro lugar, minha capacidade de manter nosso povo unido e confiante em nosso meio de vida seria recompensado com minha elevação a chefe, do que a princípio era uma tribo, e que com o passar das gerações, viria e se tornar uma nação.
Minha primeira vida começou na dúvida, mas terminou na certeza. Até então jamais o meu povo tinha passado por tão terríveis provações, e até então jamais meu povo tinha precisado tanto de um líder. E quando essa necessidade surgiu, eu assumi essa responsabilidade, não sem receios, não sem temor. Assumi a guarda daquelas pessoas famintas, expulsas de suas terras por agressão, por doença, por fome, por guerra. Como quem toma uma criança pequena e doente nos braços, incerto de sua sobrevivência, eu os acolhi. E a divindade sem nome que me escolheu, e que apenas ao velho curandeiro, meu velho mganga-avô deu a conhecer seu rosto, talvez tenha ajudado em minha missão. Me tornei rei, vivi muitos e muitos anos, lancei minha semente e espalhei meu nome e meus ensinamentos, e numa velhice tranqüila. Assim terminou minha primeira vida.