quinta-feira, 2 de maio de 2013

O mendigo e o poeta


João Carlos sentiu ânsias de espancar o cara. Mesmo ali naquele lugar tão agradável e numa tarde-quase-noite de temperatura amena. O sol despedindo-se do dia, as nuvens pintadas de um rosa ao mesmo tempo feminino e vital. Um fim de dia sexy, prenunciando uma noite promissora, aberta de possibilidades. Mesmo assim, diante de tal cenário, sentiu aquela vontade primitiva e urgente de espancar o cara.

Talvez fosse a aparência dele... Todo aquele despojamento cuidadosamente estudado, aquela falta de estilo flagrantemente estilosa. Aquele jeito relaxado e à vontade que parecia ser fruto de horas de treino diante do espelho. Ou talvez aquele cabelo limpíssimo e saudável, penteado cuidadosamente em dreadlocks de forma a parecer nojento, ensebado e preso com uma faixa. Talvez a roupa, que mesmo usada de forma a produzir uma aparência quase hippie, trazia em algum lugar a etiqueta de uma loja caríssima da Zona Sul. As sandálias de couro, também exibindo um pequeno logotipo de uma marca que não condizia com a intenção semiótica da figura que as trazia calçadas.

Mas depois, analisando em retrocesso aquele momento, João percebeu melhor. Lembrou que a gota amarga de irritação que desencadeou a vontade de empurrar a cabeça daquele indivíduo repetidas vezes contra parede até que seus dentes saltassem (ou até que seu rosto se transformasse em uma massa de carne não-identificável) era a maldita pasta. Na verdade, não a pasta azul de polionda que ele carregava, mas o fato de estar repleta de papéis. Papéis baratos, mal dobrados e xerocados com qualidade péssima. Papéis cobertos com desenhos irritantemente posicionados na fronteira entre o quase bem feitos e o infantilmente psicodélicos. Papéis com desenhos desesperadoramente previsíveis de mulheres virando rios ou árvores, de conexões entre homens e astros, planetas ou fluxos celestes. Desenhos de cidades se transformando em apocalipses, de ratos e morcegos protagonizando atos humanos. E por fim, a poesia. Sim, escritas à mão, entremeadas naquelas páginas, disputando espaço com os desenhos previsíveis, as denominadas poesias, oferecidas ali, na porta daquele centro cultural. Na porta de um prédio belíssimo, repleto de oportunidades de testemunhar poesia em cada pequeno detalhe, fosse ele de uma obra, de um pequeno gesto de um visitante, ou de uma pequena rachadura numa bela coluna antiga.

Como um mendigo na porta de uma igreja, que nada quer com Deus nem com reza, apenas desejoso de um trocado para a cachaça de logo mais, ali estava ele com sua maldita pasta azul.Como um mendigo que recusa a admoestação do velho padre, escolhendo firmar seu santíssimo, arrogante e autoproclamado direito à caridade dos trocados de quem passa, ali estava ele vendendo sua assim chamada poesia. Imbuído da mesma férrea certeza do mendigo na fé de sua cachaça, e na recusa da possibilidade de levantar-se da sujeira em direção a qualquer outra perspectiva da vida, o cara ofereceu a João sua poesia previsível. Ainda tomado pela ânsia de espancá-lo, sem que pudesse jamais explicar que tal ânsia não era, sobremaneira gratuita, João Carlos limitou-se a parar defronte a ele. E dizer quase entre dentes, com um olhar de indisfarçável ferocidade:
-Não obrigado. Quando quero poesia ruim, eu mesmo faço.