quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A história de Kabaro - Parte 04

© Momotte2

Ao fim de minha primeira vida, meu espírito (ainda não plenamente consciente de si) começou a vagar sem rumo pelo que parecia ser uma região fria e nebulosa. Era tão diferente da terra ensolarada e com tantas paisagens diferentes onde vivi, que demorei a entender o que acontecia. Só percebi melhor o que se passava quando parei na beira de um riacho. Sentia sede, e me atraiu o agradável som de água rolando nas pedras. Parei á margem, e senti um incômodo muito forte ao observá-lo de perto. Apesar de não sentir cheiro algum, percebia o limo cinza e várias coisas atiradas no rio ou boiando, coisas estranhas que eu nunca tinha visto, algumas pareciam potes de barro, porém mais retas e feitas de algum material desconhecido. Objetos estranhos e aquele limo cinza nas pedras, que me impediram de sequer tentar beber dali. Ao me inclinar por sobre a margem para observar, pude ver meu reflexo e ele se parecia comigo no auge de minha juventude, e não com o velho cansado que eu lembrava ser nos últimos momentos de consciência, antes de meu espírito deixar meu velho corpo. Aquela cena me surpreendia tanto quanto o aspecto do rio. Me afastei, embora não antes de mirar o reflexo mais uma vez, com vontade de me agarrar àquela imagem de um homem jovem e saudável. Depois de ver o reflexo mais uma vez, dei as costas ao rio.

Em meio à névoa, voltando pelo caminho por onde tinha chegado ao curso d’água, identifiquei uma árvore enorme a alguma distância. Sua aparência era envelhecida e um tanto triste, porém não tão estranha aos meus olhos quanto o aspecto do rio cinzento. Acomodei-me perto de suas grandes raízes e observei minhas mãos e meus braços, que combinavam com a imagem de juventude que o reflexo do rio mostrou. Minha mente parecia funcionar com menos da metade da velocidade que me era costumeira, que era ainda ágil mesmo nos meus tempos de velhice já avançada. Cada pensamento agora demorava um tanto a se formar, e parecia passar muito tempo até que eu parasse de pensar em uma coisa e pudesse começar a pensar em outra. Quando alcancei a noção de que tinha partido da minha vida e que estava ali naquela região tão estranha em forma espiritual, a mente pareceu clarear um pouco. Minha velha curiosidade retornou, assim como um domínio mais próximo de meus pensamentos e tive vontade de explorar os arredores.

Olhei a árvore, percebi que também não se parecia com as árvores da minha terra, mas que combinava pefeitamente com a atmosfera soturna daquele lugar, que parecia flutuar entre flocos de uma grossa névoa cinzenta. De seus galhos pendiam folhas compridas e tristonhas, de um verde escuro e sóbrio. Sua casca cinzenta e repleta de liquens parecia fazer parte daquele local, e de nenhum outro mais. Seus galhos se estendiam até boa distância do tronco, bastante retorcidos porém sempre em uma direção definida. Em um deles, um pássaro preto. Olhei-o com curiosidade, pois se parecia com alguns de que me lembrava, embora não fosse igual a nenhum de que me lembrasse. À medida em que me aproximei do galho onde estava, me retribuiu um olhar, e o arrepio que senti me deu certeza de que havia inteligência no brilho por trás daqueles olhos de pássaro.

Fiquei parado, entre a curiosidade e a apreensão, enquanto o pássaro saltitava pelo galho até mais próximo de mim. Virou a cabeça algumas vezes, como se querendo me olhar por ângulos diferentes. Enfim emitiu um som com sua voz rouca, embora perfeitamente compreensível:

-Kabaro!