sexta-feira, 20 de junho de 2014

Um passo à frente para o Brasil

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Tive recentemente uma conversa via redes sociais com alguns amigos onde um consenso foi a previsão de nuvens negras no horizonte dessa campanha eleitoral que se aproxima. A meteorologia política apresenta sinais claros: uma tensão no ar, temperatura elevada, pressão atmosférica explodindo, eletricidade a ponto de formar raios. O momento do país é estranho, especial. Passamos pela primeira Copa do Mundo de futebol onde o povo brasileiro conseguiu prestar tanta atenção na política quanto no futebol. O caldeirão de agitação política é composto dos mais variados ingredientes: o desconforto social, o cansaço do brasileiro comum com a situação precária da saúde e da segurança pública, a roubalheira ainda não investigada (mas de conhecimento de todos) nas obras para a Copa do Mundo, a vaia à presidente Dilma, o desencanto de uma parcela crescente da população com o governo programático e ineficiente (exceto para o próprio partido) do PT, a falta de uma oposição verdadeira e atuante ao governo durante mais de uma década por parte dos partidos que deveriam ser de fato de oposição. São muitos ingredientes num sopão estranho que chega até a borda do caldeirão, e que nesses meses que antecedem a eleição, começa a ferver. O caldo vai transbordar, disso não há muita dúvida. O que é incógnita ainda, é como. Se irá escorrer do caldeirão, se tentarão tampar e o negócio irá explodir, só o futuro dirá. Mas uma coisa é certa. Nossos políticos tradicionais, repetindo o erro de avaliação que cometeram nas manifestações de junho de 2013, não estão preparados para nada disso.

Eles entendem apenas da manutenção de suas vantagens, status e poder. Tudo que estarão pensando é em como se comportar nessa tempestade de forma a não perderem suas boquinhas. É o mais básico dos instintos de autopreservação. O político de que o país precisa ainda não "nasceu". Digo, até existem alguns que se encaixariam nessa alcunha, de "político que o país precisa", mas eles são pouquíssimos, estão perdidos boiando num mar de chorume que são seus colegas mais tradicionais. Pra que esses políticos novos (não na idade, mas na maneira de pensar a política) possam trabalhar direito, render no jogo, precisará mudar muito desse sistema que temos hoje. O sistema que funciona agora é todo montado pelos políticos digamos, tradicionais. Atende à necessidade primária deles, que é o cartel de interesses, a manutenção do poder, das vantagens e privilégios. Os políticos novos que estão lá tem muita dificuldade de jogar o jogo das velhas raposas. Não é de se espantar, pois muitas das própria regras do jogo são ofensivas aos novos políticos. Para que isso mude, o país, o sistema, e a própria mentalidade dos brasileiros precisa dar um passo à frente.


Considero que um passo à frente para nosso país seria uma "desideologização" da política. Muitos poderiam se adiantar para achar essa ideia absurda, principalmente os mais radicais, mas a ideia é simples. Vemos, no dia a dia do sistema político brasileiro, duas realidades. Uma, é um infrutífero, (ainda que democrático) debate de ideias, muito polarizado e maniqueísta. É 8 ou 80, é bem contra mal, é ou você concorda comigo ou você não presta. A outra, é uma absoluta amoralidade por parte dos jogadores, os políticos que estão dentro de campo. Não importa o partido, não importa o cargo, a grande maioria tem como preocupação primária a garantia de vantagens, poder e rendimentos para si próprio. A manutenção de seu status quo e muito em seguida, se sobrar tempo, talvez, pensar em trabalhar como político.

Essa discrepância entre esses dois aspectos vem sendo uma chaga que sangra sem parar o dinheiro dos impostos, e atrasa o país. Talvez seja a hora de uma nova "raça" de políticos entrarem em cena. Em primeiro lugar, tem de ter vontade de melhorar o país, pra que tudo melhorando, até mesmo a vida dele melhore também. E depois, tem que pensar que o país é um só, então o país vem em primeiro lugar, e a ideologia e o debate de ideias pode até existir, mas o país tem que vir em primeiro. Desideologizar a política, passa a ser então condição sine qua non para um avanço sólido, real e igualitário para nosso país.

domingo, 15 de junho de 2014

A vaia, a teimosia, a hipocrisia, e o Brasil nisso tudo.


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© Pelicano


Seguem três textos curtos a respeito da vaia à presidente Dilma na abertura da Copa, da polêmica de ataques e defesas que se seguiu ao acontecimento, e minha visão e sentimentos a respeito do evento. 

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Defender um político que está sendo criticado por não estar servindo ao país como prometeu em campanha, participando de um governo corrupto, e deixando de fazer obras de valor inestimável à nação, é muito mais indesculpável que qualquer grosseria dita numa arquibancada de campo de futebol, na minha humilde opinião.

Falta de respeito é você ser pobre, idoso, precisar de um posto de saúde e ter que ficar deitado no chão de um corredor sem atendimento não digo nem decente, mas minimamente humano.

E isso depois de DOIS MANDATOS e MEIO dessa mesma porcaria de partido no poder. Isso sim é falta de respeito e grosseria indesculpável... com o povo brasileiro. Vaia merecida.

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Gente que se sente "ofendida e revoltada" com um político sendo xingado (mais que o próprio politico se ofendeu), mas que destila tanto ou mais ódio a outros políticos que são adversários do xingado...

Gente que se arvora a defender hipocritamente as incompetências, os atrasos e as falhas éticas e institucionais desses políticos, mas que ao mesmo tempo desejam ser vistos como baluartes de moral e correção pelos seus semelhantes...

Gente que por apego a escolhas irracionais e vaidades pessoais, ignorantemente bate no peito e proclama a inamobilidade de suas próprias opiniões, como se teimosia fosse qualidade e recusa a admitir erros fosse valor.

Gente que dá muito mais importância a um político no cargo mais alto da nação ser vaiado do que à miríade de atos incompetentes, corrupções, irregularidades, crimes comprovados e mentiras que este mesmo político e seu partido promovem há mais de uma década no país.

Gente que simplesmente por ser, pensar e se conduzir assim, faz com que o Brasil nunca chegue a ser o tal "país do futuro" que tanto merece ser... por ter essa gente que é apegada romanticamente e irracionalmente às mais absurdas e paralisantes idiossincrasias.

Depois, se quiserem saber porque certas coisas no Brasil nunca mudam pra melhor, é fácil...
Perguntem pra essa gente aí...
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O povo brasileiro passou 500 anos manso, sofrendo desmandos nas mãos de todos os políticos, de todos os partidos. O problema não é só o PT. É o PT TAMBÉM. Essa é a diferença que as pessoas não entendem. Se se bate mais no PT hoje, é porque ele está com a bunda na janela, se fosse outro, que se batesse também.

O que não pode é a hipocrisia de dizer que "o PT não inventou a corrupção, etc.etc.etc." não inventou, mas criticava antes de ser governo, como se fosse imune a ela. Hoje, se chafurda na mesma lama, vai ficar ofendidinho quando for criticado? Não pode. Não tem esse direito, de maneira nenhuma.

Ainda falta muito pra mentalidade do brasileiro mudar. Mas ter-se autocrítica e perceber os defeitos em si mesmo, é altamente positivo. Perceber que temos muito o que melhorar, e encarar nossas limitações em vez de ficar só sambando que nem otários alegres e eternamente atrasados, já é um passo em direção às melhoras que o país precisa.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Sobre essa Copa aí...

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© epochtimes.com.br

Greves, agitações, polêmicas, reclamações. O Brasil calçou as chuteiras, mas ainda não ficou bem claro se é para torcer pela Seleção, ou se para uma aguerrida troca de caneladas simbólicas. Ou quem sabe, diante das circunstâncias, caneladas reais mesmo, nada simbólicas. Alguns torcem para que o circo pegue fogo, alguns querem que a Copa se dane, se exploda, que a Copa se foda! Já outros procuram assumir um certo bom-mocismo verde-e-amarelo, impressionados em ver que o patriotismo esportivo que os unia até tão pouco tempo atrás já não satisfaz a toda a população de maneira tão unânime. Esses que optam pelo bom-mocismo, talvez saudosos de tempos mais simples e inocentes, quando se sentia o orgulho nacional ao torcer para a Seleção na copa, criticam duramente os que não conseguem mais assumir esse papel.

A questão é que seja a Copa do Mundo de 2014 um fiasco ou não, qualquer brasileiro  minimamente sensato percebe que muitos problemas não resolvidos (ou sequer abordados) pela chegada dos grandes eventos internacionais irão permanecer. A população continuará sem ser alfabetizada decentemente e sem receber uma educação com o nível mínimo necessário para as necessidades que o futuro do país exigem. O brasileiro minimamente sensato percebe também que a saúde pública do país seguirá no CTI. Percebe que o transporte público continuará dominado por máfias, amarrado por lobbies e imobilizado por seríssimos problemas de infraestrutura. De maneira exageradamente tardia, algum indício de mudança começa a despertar na mente coletiva brasileira. Não a mudança ideal, não o "despertar do gigante" que alguns acharam ter ocorrido durante as manifestações de junho de 2013.

A mudança que percebo ocorrer é algo mais espasmódico. Algo que lembra mais ânsias de vômito do que o despertar de um sono. O brasileiro está enojado. O Brasil começa a, talvez pela primeira vez em  sua trajetória, a ter coragem de fazer uma autoanálise e de ser capaz de olhar não só seu lado bom, mas também seus defeitos e o quanto esses defeitos contribuíram para que as coisas chegassem até onde chegaram. Talvez pela primeira vez, o brasileiro tenha conseguido um início de tomada de consciência de que boa parte da (ou talvez quase toda? Ou talvez toda?) "culpa", por "toda essa merda que está aí" é do próprio brasileiro? Talvez. Ainda não se sabe o quão profunda é a capacidade de se autocriticar de nossa sociedade, ou as consequências dela, mas fica claro que o brasileiro quer mais de seu país. E que os governantes, que em última análise são apenas outros brasileiros, não sabem muito bem o que fazer com essa informação. Ou talvez saibam, mas não queiram. Fazer qualquer coisa de positivo com essa energia nova que está circulando solta pela atmosfera desde junho de 2013 implica em parar todos os planos de locupletação, trocas de favores e manutenção de vantagens. Significa deixar de fazer o que nosso sistema político foi criado já fazendo. É algo um tanto difícil de implementar.

Nesse clima, não seria sábio tentar-se empurrar goela abaixo do mundo que o país é capaz de realizar grandes eventos só pelo orgulho nacional. Seria inocente pensar assim. Sempre que um evento de nível internacional acontece, são imensas negociatas para se tirar vantagem. São inúmeras oportunidades de investimento esperando acordos bilionários para acontecerem. Um político esperto consegue capitalizar muito em cima de um evento como esse. Mesmo que o evento não seja exatamente o que o país mais precise naquele momento. Ainda mais quando é um evento que mexe com a vaidade esportiva de um povo. E quando essa vaidade esportiva consegue ser manipulada de maneira hábil por um político ardiloso, a aceitação de uma Copa do Mundo é algo que se torna bem mais fácil pela opinião pública.

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©Gustavo Duarte

Mas o que muitos amantes do esporte estão deixando de ver é que o fato de que pela primeira vez em sua história, o brasileiro está em processo de despertar um pingo de consciência (que seja) para outras coisas que não são novela e futebol. A grande maioria dos textos e manifestos nas últimas semanas criticando quem critica a Copa (vejam só) vem da parte de pessoas que vivem do futebol, trabalham com futebol, estão profundamente envolvidas no universo do futebol. É óbvio que é interesse dessas pessoas que o brasileiro não perca o interesse pelo futebol. Que o brasileiro não torça contra, que o brasileiro não dê as costas para a festa. Não é nada bonito, nem rentável, nem agradável pra quem é do show business ter a casa vazia ou vaias na plateia. Infelizmente, o que essas pessoas ligadas ao "show business do futebol" não tem conseguido perceber, é que vivemos num dos países mais hipócritas do mundo. E que numa das poucas oportunidades em que a sociedade demonstra uma insatisfação com essa hipocrisia, se tenta taxar de "chato" quem "está torcendo contra". Infelizmente, essas pessoas não percebem que por décadas e décadas de tempo perdido discutindo, amando e sendo obsessivos com o futebol como se fosse a coisa mais importante do mundo, o Brasil perdeu não o bonde da História, mas vários bondes, de várias histórias. Perdeu-se até um trem. Para ser mais exato, um trem-bala.

Se o brasileiro demonstrasse amor por seu país e cobrasse de seus governantes com a mesma determinação que demonstra por seu time ou seleção, e cobra seus jogadores e técnicos, viveríamos no melhor dos países, com os melhores serviços públicos e teríamos uma população em estado quase pleno de felicidade. Teríamos um país onde não se rouba, onde não se comete tanta violência, onde não se passa fome.  Mas não é o que acontece. Por causa da hipocrisia brasileira, se você prefere criticar o governo a bater palma para palhaçadas, você é chato. Se você não sente "orgulho" em se vestir de verde e amarelo na Copa (só na época da Copa) e torcer pro seu país, você é chato. Se você prefere que em vez de uma Copa, tivéssemos políticos decentes fazendo obras e promovendo mudanças reais e não marketing partidário e planos de manutenção de poder por meio de negociatas e vendas de cargos, você é chato. Ok, posso até ser chato, mas hipócrita eu não sou.

quarta-feira, 26 de março de 2014

A Grande Caminhada das baratas


As baratas eram seres extremamente sensíveis, apesar da imensa maioria da população carioca desconhecer o fato. Peculiares insetos esses, que residiam no lado de baixo da caótica metrópole. Enquanto alvos de nojo e profundo desprezo pela população da superfície, não tinham problema algum quanto a isso. Viam os humanos como um incômodo menor, e também como uma fascinante fonte de novidades. Após 300 milhões de anos de estadia em nosso planeta, esses sagazes pterigotos marrons evoluíram até o ponto de suas mentes estarem muito além dessas pequenezas entre espécies. Sábias e determinadas, sempre olharam com curiosidade essa espécie de macaco pelado. Teriam destinado às recentes aventuras dos humanos pouca consideração, não fosse uma sanha voraz que fez com que em tão pouco tempo aqueles símios estranhos tivessem coberto todo o globo. Mas de nada disso os cariocas desconfiavam.

Em um determinado ano, as perceptivas antenas das baratas começaram a captar uma certa agitação no ar. Suas costumeiras idas e vindas nos subterrâneos escuros do Rio de Janeiro começaram a pontuar-se de pausas ligeiramente mais lentas. Nem mesmo o mais competente dos entomologistas perceberia, mas as ínfimas frações de segundo a mais nessas pausas tinham um significado da mais profunda importância. Importância para a civilização das baratas, não para a nossa, é óbvio. As baratas interagiam. Nossa arrogante cultura humana não alcança o grau de entendimento suficiente para considerar essa interação como uma forma de comunicação. O que para as baratas não importa nem um pouco, pois a comunicação acontece, e naquele ano o universo das baratas estava em franca ebulição. Mesmo para uma espécie tão resiliente e sábia, dotada da paciência legada por três centenas de milhões de anos de evolução nesse mundo estranho, a ebulição estava lá. E de nada disso, os cariocas faziam ideia.

Naquele ano (sendo “ano” uma invenção humana, baratas não medem o tempo assim), os sentidos de percepção das baratas (uma realidade que nem o mais brilhante dos biólogos jamais tivera condições de sonhar) anunciavam para um ponto bem próximo no futuro o advento da Grande Jornada. Nenhum humano jamais teria como saber disso, é claro. Mas a Grande Jornada é um acontecimento lendário. É algo que toda barata traz gravado em seu íntimo, toda a cultura de sua civilização enxerga a Grande Jornada como o acontecimento de uma era. E não é demais lembrar que para uma espécie que perdura com poucas alterações evolutivas há quase um terço de bilhão de anos, algo dessa monta é infinitamente mais importante que qualquer coisa que qualquer humano seja capaz de considerar. Inclusive os cariocas.


Os sentidos profundamente empáticos e sinestésicos das baratas indicaram gradualmente naquela época um certo nível de interesse e vigilância. A interação com os humanos sempre causou nas baratas um interesse especial, pois nunca uma espécie tinha produzido tanto material aproveitável para elas. As interações químicas e as reorganizações de materiais que os curiosos símios haviam proporcionado fizeram a vida das baratas mudar bastante naqueles poucos milhares de anos de convivência entre as espécies. As estruturas que os humanos modificavam, sua capacidade de produzir deliciosas quantidades de lixo, fezes, imundície e materiais com os mais deliciosos (para as baratas) fedores e asquerosas viscosidades eram algo que tinha levado a civilização das baratas a uma era de ouro. Embora os humanos matassem baratas com certa freqüência, não representavam para elas algo negativo. Os humanos não precisavam viver das baratas. Não tinham nelas sua fonte de alimentos, embora em alguns momentos se alimentassem delas (ou de parte delas sem sequer ter consciência disso), fato que as divertia profundamente ao lembrar. De qualquer modo, eram coisas nas quais os cariocas não pensavam.


Quando os humanos evoluíram e criaram sua assim chamada civilização, a aguçadíssima sinestesia das baratas começou a captar com profundo fascínio as cores e sons que as interações daquela espécie causavam. Não só era fascinante a produção desse novo e maravilhoso lixo, com toda a miríade de novas combinações consumíveis, mas também o novo tipo de entretenimento que a atividade humana proporcionava às baratas. A comunicação humana era colorida, seus conflitos eram música, enquanto a interação, a violência e a degradação de suas personalidades tinham um cheiro inebriantemente delicioso. A vida segura no subterrâneo era muitas vezes deixada de lado em nome do infindável prazer de chegar mais perto das sensações maravilhosas que aqueles seres estranhos provocavam. Um humano não entenderia, mas o risco de morrer para uma barata, apesar de ser levado em consideração, é algo a que elas dão bem menos importância do que eles. Daquelas coisas que cariocas nem fariam questão de pensar.


Naquele ano, o ano (humanamente falando) em que aconteceu a Grande Jornada das baratas, todo o cosmos se equilibrou perfeitamente. É necessário um alinhamento especial de fatores para que a Grande Jornada seja empreendida. Uma quantidade de lixo espetacular teve que ser produzida. A forma como esse lixo tomou as ruas tinha que ser especialmente espetacular também. A música inebriante gerada pelo desprezo de um humano para com a limpeza da cidade onde ele vive tem que estar no tom correto para que a Grande Jornada tenha condições de acontecer. As interações humanas precisam acontecer de uma forma muito específica. A violência entre os humanos tem que existir numa intensidade e quantidade muito específicas. A violência ser entre pessoas de uma mesma família também contribui muito para o frescor e a delícia do seu cheiro. Mesmo a barata com o olfato menos apurado precisa conseguir perceber a inebriante diferença. O desprezo entre os seres humanos vivendo em um determinado raio de distâncias precisa acontecer com tal freqüência e costume, que o brilho de suas cores se torne inconfundível mesmo para a mais jovem e inexperiente das baratas. A quantidade de humanos morando e vivendo perto, no meio de, em volta do lixo também deve aumentar o suficiente para tornar deliciosa para as baratas essa proximidade. E por fim, uma classe muito específica de humanos que vive um pouco mais longe das baratas deve exalar o som proveniente da satisfação de seus desejos. A música de uma negociata bem concluída deve ser captada. Os belíssimos acordes de um desvio fraudulento de verbas. A admissão em meio a risadas em um jantar requintado de que um hospital não está funcionando ou que um equipamento comprado está apodrecendo em algum depósito. Quando a conjunção de tantos fatores aparentemente impossíveis acontece, as baratas sabem. A Grande Jornada está perto de acontecer. Embora os cariocas ainda não percebam o fato.

Um dia, não importa muito qual foi o fato final, o gatilho do advento foi acionado. Poderia ter sido o aromático espancamento de uma trabalhadora por “rapazes de boas famílias” da Zona Sul carioca. Poderia ter sido bandidos arrastando uma criança por quilômetros em um carro, até que o pequeno corpo ficasse irreconhecível. Sendo que nesse caso em específico, a cereja do bolo seria o pouco arrependimento por parte dos criminosos. Poderia ser o fascinante caleidoscópio de cores que as antenas das baratas captaram ao testemunhar policiais arrastando o corpo de uma mulher que estava na mala de seu camburão, após uma desastrada e trágica ação. Poderia ser o sabor do sorriso de um político ao perceber o silêncio dos jornais sobre o sumiço milionário de certas vigas após a demolição do viaduto da perimetral. A questão é que, no momento em que toda essa espiral de acontecimentos entrou em colisão na turbulência da vida da tal cidade, a Grande Jornada aconteceu. Nesse dia, os cariocas souberam.

Era um dia de chuva, pois a água é importante. Ruas alagadas, caos no trânsito, Praça da Bandeira alagada, “pois as obras ainda não haviam sido concluídas”. Fim de tarde, início de noite. Os pontos de ônibus cheios de gente tentando chegar em casa. Sem qualquer aviso perceptível para os humanos (embora para as baratas, tenha ocorrido entre cantos de glória, exclamações de júbilo e prazer), a Grande Marcha para a superfície do Rio de Janeiro aconteceu. Todos os milhões, bilhões, os ignorados trilhões de baratas existentes nos cantos escuros dos bueiros da cidade marcharam a um só momento para fora de seus esconderijos. O inesquecível clamor de terror de uma população de humanos sendo assaltada pelo medo primordial, pela loucura, pelo nojo (tão cheiroso para as baratas), seria repetido e recontado por todas as gerações de baratas daquele dia em diante. A onda marrom-escura que subia por pernas, que cobria totalmente pessoas caídas, que fazia carros inteiros desaparecerem sob seu avanço era algo nunca antes visto por olhos humanos. Muita gente morreu do coração, muita gente teve convulsões, muita gente não teve nem como nem para onde fugir. As baratas, enlouquecidas em sua euforia, continuavam em torrente, uma procissão interminável saindo pelos bueiros, pelos ralos e buracos. Demonstravam assim seu amor por essa população que deixa lixo na praia, que mantém cracolândias, que engravida meninas de doze anos, que cheira cola, que não educa, que corrompe, que não cuida, que rouba, que mata, que estupra. A Grande Marcha era a expressão máxima do agradecimento das baratas por todas as boas sensações e prazeres que essa generosa e jovem espécie de animal trouxe para a civilização desse grupo de insetos. Nesse dia, os cariocas souberam, embora jamais fossem capazes de compreender. Mas como diria uma barata, “isso são coisas de espécie jovem, eles ainda tem muito a aprender”.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Super-heróis, princesas e de onde vem os monstros


Nesses últimos dias, devido a uma conjunção de acontecimentos, eventos familiares, leituras diversas e observações da vida, peguei me pensando nas fantasias infantis. É isso mesmo. Fantasias infantis. Reparei o quanto elas estão corriqueiras hoje em dia, muito mais, infinitamente mais que quando eu era criança, por exemplo. Só que essa mistura louca de coisas que aconteceram nessa semana que passou me fizeram reparar a questão das fantasias por um ângulo diferente, acabei encontrando uma esquina no pensamento para poder interpretar o assunto, e vim parar aqui, nesse texto.

Comecei a pensar em como se tornou comum "vestir" as crianças de super-herói (mais comumente os meninos) e de princesa (mais comumente as meninas). A aparente popularização das fantasias deixou de ser um recurso carnavalesco e muito mais improvisado, como era nos já longínquos inícios de anos 80 da minha infância. Hoje é muito frequente ver os pirralhos usando suas roupinhas de herói e princesa como roupas do dia-a-dia. Muitos podem lembrar do filme "A Creche do Papai" do Eddie Murphy, onde tinha um moleque que passa o filme inteiro com a roupa do herói Flash, e acha que é o próprio. Apesar de ultimamente eu não ter visto um moleque achando que é o próprio herói representado pela fantasia que está usando, o número de fantasiadinhos é indubitavelmente maior hoje do que era na época que eu tinha a idade deles.

Tentei lembrar como era a minha relação com as fantasias de herói naqueles tempos. O que me veio à memória foi algo bem interessante, do ponto de vista simbólico. Devido à conjunção da menor disponibilidade desse tipo de roupa/brinquedo no mercado com o fato de minha família ser dura mesmo, a possibilidade de "se vestir de herói" era muito mais remota para a criançada de então do que é para as de hoje. Lembro de ver, com certa raridade nas propagandas dos gibis da época um tipo de fantasia que não passava de uma roupinha de malha estampada com as cores e os motivos de um ou outro herói, e isso já me parecia algo fantástico, quase inalcançável. Era caro, era difícil de comprar, era supérfluo. Ou seja, se quisesse brincar de ser herói, tinha que usar a imaginação. Sem perceber, eu e provavelmente muitas outras crianças dessa época, estávamos montando nossas personalidades com um componente especial, que era: "você não é um herói, você precisa se esforçar muito pra ser um herói, ser um herói é algo que tem que ser perseguido, deve-se querer muito ser um herói para que assim seja". E para sermos heróis, a gente usava a imaginação. As asas dela nos transportavam para o mundo das abstrações que embora inocentes, iam trazer noções de o que é ser herói, o que um herói faz, e todo um mundo de aspirações de coisas elevadas e grandiosas que os heróis faziam (ou só encher os monstros de porrada e pronto). Mas pensando aqui, quem garante que encher monstros de porrada não fazia parte do "treinamento" para as dificuldades que enfrentaríamos na vida adulta? Pois é.

E hoje, vejo uma mudança na dinâmica das fantasias infantis. O que antes era algo que as crianças brincavam de ser, aspiravam ser, fingiam ser, hoje é reforçado na cabeça deles que eles são. Todo garoto é tratado pelos pais como se fosse um super herói que já veio herói do óvulo. Toda menina é uma princesa que já veio linda, rica, poderosa e com direito a súditos. A roupa da princesa, o uniforme do herói não é mais algo a que se aspira, alguma conquista, como um esperadíssimo brinquedo a ser ganho no dia das crianças ou no Natal. É algo corriqueiro, é algo do dia-a-dia, é uma roupa comum. Todo menino é um herói, toda menina é uma princesa. E sempre que eu me pego pensando em como a cabecinha dessas crianças está absorvendo esse tipo de informação, não consigo deixar de me preocupar um pouco. Como será um homem adulto que cresceu sendo tratado desde muito pequeno como um ser superior? Como um presente dos céus? Como será para uma mulher que desde a mais tenra infância é chamada por um título de nobreza, descobrir que é apenas mais uma num mundo de tantas pessoas, que não terá súditos para lhe servirem pra sempre. Como é para os adultos resultantes se livrar das fantasias de heróis e princesas depois que eles crescem demais para caberem nelas? Que tipo de reflexo psicológico fica quando os príncipes e princesas crescem e descobrem que o mundo não é o conto de fadas que pais culpados tentaram armar para eles? É sempre nessa hora que eu desconfio ter descoberto a origem dos monstros...