quarta-feira, 26 de março de 2014

A Grande Caminhada das baratas


As baratas eram seres extremamente sensíveis, apesar da imensa maioria da população carioca desconhecer o fato. Peculiares insetos esses, que residiam no lado de baixo da caótica metrópole. Enquanto alvos de nojo e profundo desprezo pela população da superfície, não tinham problema algum quanto a isso. Viam os humanos como um incômodo menor, e também como uma fascinante fonte de novidades. Após 300 milhões de anos de estadia em nosso planeta, esses sagazes pterigotos marrons evoluíram até o ponto de suas mentes estarem muito além dessas pequenezas entre espécies. Sábias e determinadas, sempre olharam com curiosidade essa espécie de macaco pelado. Teriam destinado às recentes aventuras dos humanos pouca consideração, não fosse uma sanha voraz que fez com que em tão pouco tempo aqueles símios estranhos tivessem coberto todo o globo. Mas de nada disso os cariocas desconfiavam.

Em um determinado ano, as perceptivas antenas das baratas começaram a captar uma certa agitação no ar. Suas costumeiras idas e vindas nos subterrâneos escuros do Rio de Janeiro começaram a pontuar-se de pausas ligeiramente mais lentas. Nem mesmo o mais competente dos entomologistas perceberia, mas as ínfimas frações de segundo a mais nessas pausas tinham um significado da mais profunda importância. Importância para a civilização das baratas, não para a nossa, é óbvio. As baratas interagiam. Nossa arrogante cultura humana não alcança o grau de entendimento suficiente para considerar essa interação como uma forma de comunicação. O que para as baratas não importa nem um pouco, pois a comunicação acontece, e naquele ano o universo das baratas estava em franca ebulição. Mesmo para uma espécie tão resiliente e sábia, dotada da paciência legada por três centenas de milhões de anos de evolução nesse mundo estranho, a ebulição estava lá. E de nada disso, os cariocas faziam ideia.

Naquele ano (sendo “ano” uma invenção humana, baratas não medem o tempo assim), os sentidos de percepção das baratas (uma realidade que nem o mais brilhante dos biólogos jamais tivera condições de sonhar) anunciavam para um ponto bem próximo no futuro o advento da Grande Jornada. Nenhum humano jamais teria como saber disso, é claro. Mas a Grande Jornada é um acontecimento lendário. É algo que toda barata traz gravado em seu íntimo, toda a cultura de sua civilização enxerga a Grande Jornada como o acontecimento de uma era. E não é demais lembrar que para uma espécie que perdura com poucas alterações evolutivas há quase um terço de bilhão de anos, algo dessa monta é infinitamente mais importante que qualquer coisa que qualquer humano seja capaz de considerar. Inclusive os cariocas.


Os sentidos profundamente empáticos e sinestésicos das baratas indicaram gradualmente naquela época um certo nível de interesse e vigilância. A interação com os humanos sempre causou nas baratas um interesse especial, pois nunca uma espécie tinha produzido tanto material aproveitável para elas. As interações químicas e as reorganizações de materiais que os curiosos símios haviam proporcionado fizeram a vida das baratas mudar bastante naqueles poucos milhares de anos de convivência entre as espécies. As estruturas que os humanos modificavam, sua capacidade de produzir deliciosas quantidades de lixo, fezes, imundície e materiais com os mais deliciosos (para as baratas) fedores e asquerosas viscosidades eram algo que tinha levado a civilização das baratas a uma era de ouro. Embora os humanos matassem baratas com certa freqüência, não representavam para elas algo negativo. Os humanos não precisavam viver das baratas. Não tinham nelas sua fonte de alimentos, embora em alguns momentos se alimentassem delas (ou de parte delas sem sequer ter consciência disso), fato que as divertia profundamente ao lembrar. De qualquer modo, eram coisas nas quais os cariocas não pensavam.


Quando os humanos evoluíram e criaram sua assim chamada civilização, a aguçadíssima sinestesia das baratas começou a captar com profundo fascínio as cores e sons que as interações daquela espécie causavam. Não só era fascinante a produção desse novo e maravilhoso lixo, com toda a miríade de novas combinações consumíveis, mas também o novo tipo de entretenimento que a atividade humana proporcionava às baratas. A comunicação humana era colorida, seus conflitos eram música, enquanto a interação, a violência e a degradação de suas personalidades tinham um cheiro inebriantemente delicioso. A vida segura no subterrâneo era muitas vezes deixada de lado em nome do infindável prazer de chegar mais perto das sensações maravilhosas que aqueles seres estranhos provocavam. Um humano não entenderia, mas o risco de morrer para uma barata, apesar de ser levado em consideração, é algo a que elas dão bem menos importância do que eles. Daquelas coisas que cariocas nem fariam questão de pensar.


Naquele ano, o ano (humanamente falando) em que aconteceu a Grande Jornada das baratas, todo o cosmos se equilibrou perfeitamente. É necessário um alinhamento especial de fatores para que a Grande Jornada seja empreendida. Uma quantidade de lixo espetacular teve que ser produzida. A forma como esse lixo tomou as ruas tinha que ser especialmente espetacular também. A música inebriante gerada pelo desprezo de um humano para com a limpeza da cidade onde ele vive tem que estar no tom correto para que a Grande Jornada tenha condições de acontecer. As interações humanas precisam acontecer de uma forma muito específica. A violência entre os humanos tem que existir numa intensidade e quantidade muito específicas. A violência ser entre pessoas de uma mesma família também contribui muito para o frescor e a delícia do seu cheiro. Mesmo a barata com o olfato menos apurado precisa conseguir perceber a inebriante diferença. O desprezo entre os seres humanos vivendo em um determinado raio de distâncias precisa acontecer com tal freqüência e costume, que o brilho de suas cores se torne inconfundível mesmo para a mais jovem e inexperiente das baratas. A quantidade de humanos morando e vivendo perto, no meio de, em volta do lixo também deve aumentar o suficiente para tornar deliciosa para as baratas essa proximidade. E por fim, uma classe muito específica de humanos que vive um pouco mais longe das baratas deve exalar o som proveniente da satisfação de seus desejos. A música de uma negociata bem concluída deve ser captada. Os belíssimos acordes de um desvio fraudulento de verbas. A admissão em meio a risadas em um jantar requintado de que um hospital não está funcionando ou que um equipamento comprado está apodrecendo em algum depósito. Quando a conjunção de tantos fatores aparentemente impossíveis acontece, as baratas sabem. A Grande Jornada está perto de acontecer. Embora os cariocas ainda não percebam o fato.

Um dia, não importa muito qual foi o fato final, o gatilho do advento foi acionado. Poderia ter sido o aromático espancamento de uma trabalhadora por “rapazes de boas famílias” da Zona Sul carioca. Poderia ter sido bandidos arrastando uma criança por quilômetros em um carro, até que o pequeno corpo ficasse irreconhecível. Sendo que nesse caso em específico, a cereja do bolo seria o pouco arrependimento por parte dos criminosos. Poderia ser o fascinante caleidoscópio de cores que as antenas das baratas captaram ao testemunhar policiais arrastando o corpo de uma mulher que estava na mala de seu camburão, após uma desastrada e trágica ação. Poderia ser o sabor do sorriso de um político ao perceber o silêncio dos jornais sobre o sumiço milionário de certas vigas após a demolição do viaduto da perimetral. A questão é que, no momento em que toda essa espiral de acontecimentos entrou em colisão na turbulência da vida da tal cidade, a Grande Jornada aconteceu. Nesse dia, os cariocas souberam.

Era um dia de chuva, pois a água é importante. Ruas alagadas, caos no trânsito, Praça da Bandeira alagada, “pois as obras ainda não haviam sido concluídas”. Fim de tarde, início de noite. Os pontos de ônibus cheios de gente tentando chegar em casa. Sem qualquer aviso perceptível para os humanos (embora para as baratas, tenha ocorrido entre cantos de glória, exclamações de júbilo e prazer), a Grande Marcha para a superfície do Rio de Janeiro aconteceu. Todos os milhões, bilhões, os ignorados trilhões de baratas existentes nos cantos escuros dos bueiros da cidade marcharam a um só momento para fora de seus esconderijos. O inesquecível clamor de terror de uma população de humanos sendo assaltada pelo medo primordial, pela loucura, pelo nojo (tão cheiroso para as baratas), seria repetido e recontado por todas as gerações de baratas daquele dia em diante. A onda marrom-escura que subia por pernas, que cobria totalmente pessoas caídas, que fazia carros inteiros desaparecerem sob seu avanço era algo nunca antes visto por olhos humanos. Muita gente morreu do coração, muita gente teve convulsões, muita gente não teve nem como nem para onde fugir. As baratas, enlouquecidas em sua euforia, continuavam em torrente, uma procissão interminável saindo pelos bueiros, pelos ralos e buracos. Demonstravam assim seu amor por essa população que deixa lixo na praia, que mantém cracolândias, que engravida meninas de doze anos, que cheira cola, que não educa, que corrompe, que não cuida, que rouba, que mata, que estupra. A Grande Marcha era a expressão máxima do agradecimento das baratas por todas as boas sensações e prazeres que essa generosa e jovem espécie de animal trouxe para a civilização desse grupo de insetos. Nesse dia, os cariocas souberam, embora jamais fossem capazes de compreender. Mas como diria uma barata, “isso são coisas de espécie jovem, eles ainda tem muito a aprender”.